19 agosto 2014

Demagogia penal, consumismo e insensibilidade moral

Foto: reprodução

O texto que republico abaixo (o que é autorizado pelo Instituto Avante Brasil, desde que informada a fonte) foi escrito por Luiz Flávio Gomes, doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri (2001), mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (1989), professor de Direito Penal e Processo Penal em vários cursos de pós-graduação, como a Facultad de Derecho de la Universidad Austral (Buenos Aires, Argentina) e a UNISUL, de Santa Catarina, por exemplo, além de professor honorário da Faculdade de Direito da Universidad Católica de Santa María, em Arequipa, no Peru. Vale a pena ler e refletir.

"Os demagogos, na era grega clássica, eram os líderes políticos que conduziam a res publica em nome do bem comum. Desde o 3º século antes de Cristo deixaram de ser bem-vistos (veja Wikipedia), porque passaram a refletir e manipular os medos e os preconceitos do povo. Os demagogos sabem conduzir as pessoas para seus interesses, sendo delas uma caixa de ressonância.

Um dos campos onde a demagogia se tornou mais visível consiste na defesa da lei penal severa como antídoto para os medos da população relacionados com a insegurança. Nessa área o legislador brasileiro (ou os candidatos) usa e abusa do direito de ser um descarado e inconsequente demagogo.

De 1940 até 2014 foram 155 reformas da legislação penal. A cada reforma promete-se solução para o problema da insegurança. Nenhuma lei jamais (a médio prazo) reduziu a criminalidade no país. Boa parcela da população e da mídia, irracionalmente, ainda confia nas reformas das leis penais.

Prato cheio para os demagogos, que são grandes beneficiários da cultura consumista regida pela adiaforização (conceito de Bauman – Cegueira moral – que expressa a insensibilidade moral, a neutralidade moral da nossa era líquida).

Seguindo Bauman (Cegueira moral), os consumidores (de novas leis penais cada vez mais severas) não juram lealdade à mercadoria que avidamente buscam para satisfazer suas necessidades e desejos; usam essa mercadoria enquanto satisfaz as expectativas. Em seguida já querem mais mercadoria (mais leis), porque todos os bens de consumo são intercambiáveis e dispensáveis.

O tempo que decorre entre a nova lei e seu descarte é cada vez mais curto. Daí a permanente recorrência a novas leis. Essa atitude consumista lubrifica as rodas da estelionatária política criminal brasileira, mas ao mesmo tempo joga areia nos rolamentos da moral (porque o caos se agrava a cada dia).

Anestesiados pela insensibilidade moral, esquecemos coisas elementares. Mais vale a certeza do castigo penal (como dizia Beccaria, em 1764), que a severidade da pena prevista nas leis. O criminoso não tem medo das penas duras quando sabe da impunidade, sim, tem medo da certeza de que será castigado.

Os crédulos consumistas não percebem que nossa cultura transformou cada loja e agência de serviços numa farmácia fornecedora de tranquilizantes e anestésicos (Bauman). Outra coisa não fazem os demagogos legisladores, que transformaram as leis penais na mesma farmácia fornecedora de tranquilizantes e anestésicos para a sociedade do medo (em grande parte, fundado).

A estratégia ilusionista das leis penais se converteu numa droga destinada a mitigar ou aplacar não as dores físicas, sim, as morais. “Com a negligência moral crescendo em alcance e intensidade, a demanda por analgésicos [legais] aumenta, e o consumo de tranquilizantes morais se transforma em vício” (Bauman).

Ingressamos nesse processo viciado: 155 reformas penais, sem nenhuma utilidade prática para a redução da criminalidade, constitui a prova inequívoca da nossa drogadição incivilizada, fundada em uma profunda insensibilidade moral.

A política da era da degeneração moral interpela seus súditos como consumidores, como se isso fosse o exercício da cidadania. Fomos reduzidos a meros joguetes nas mãos dos demagogos, que ainda louvam esse consumismo populista como virtude cívica. As consequências de todos esses erros crassos são imprevisíveis, enquanto não reformarmos nossa vulgaridade prazerosa."






Sobre o Autor:
Carlos Roberto Carlos Roberto de Oliveira é advogado estabelecido em Nova Iguaçu - RJ. A criação do Dando Pitacos foi a forma encontrada para entreter e discutir assuntos de interesse geral.

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