Luciana Silva Tamburini e João Carlos de Souza Correa (foto: Dando Pitacos) |
Eu até acho que posso acabar levando uma "carteirada", mas enquanto isso não acontece vou seguir contando e comentando aqui algumas situações de desrespeito à lei criadas justamente por quem é pago pelo Estado para zelar pela sua aplicação, caso específico do juiz João Carlos de Souza Correa, que há cerca de três anos e meio deu voz de prisão a Luciana Silva Tamburini, uma agente a serviço numa blitz da Lei Seca na Zona Sul do Rio de Janeiro. Apesar do constrangimento a que foi submetida no exercício legal de sua função, ela foi condenada a indenizar o magistrado por danos morais.
Não conheço o processo, o que me impede uma análise mais segura e objetiva, mas a decisão monocrática (quando o relator decide sem submeter o assunto aos seus pares) proferida pelo desembargador José Carlos Paes, da 14ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro - TJRJ (e não 36ª Vara Cível, como noticiam o G1 e O Globo) me parece absurda sob todos os aspectos e não deve prevalecer ser for levada ao Superior Tribunal de Justiça - STJ. Com efeito, numa clara inversão de valores, Paes entendeu que Luciana “agiu com abuso de poder, ofendendo o réu, mesmo ciente da função pública desempenhada por ele”. Para o desembargador, ela feriu a magistratura ao dizer que "juiz não é Deus".
A blitz onde tudo começou aconteceu na Rua Bartolomeu Mitre, no Leblon, em fevereiro de 2011. João Carlos conduzia um Land Rover sem placas e não portava carteira de habilitação. Repito: o magistrado dirigia um veículo que estava sem placas e não portava a carteira de habilitação que é exigida dos mortais comuns, razão pela qual Luciana, agente de trânsito na ocasião, informou que o veículo teria de ser apreendido e encaminhado a um pátio, contrariando o juiz, que exigiu que o carro fosse levado para uma delegacia. A coisa acabou na 14ª DP (Leblon), onde o caso foi registrado.
Segundo ficou apurado à época, João Carlos alegou que a agente Luciana Tamburini foi “debochada”, o que ela rebateu afirmando que o magistrado agiu com abuso de autoridade. Na discussão travada entre os dois na abordagem, Luciana disse ao magistrado: “Você é juiz, mas não é Deus”, ao que ele retrucou dizendo: “Cuidado que posso te prender”. A agente respondeu: “prende”.
Luciana ajuizou uma ação indenizatória contra o magistrado (processo nº 0176073-33.2011.8.19.0001), distribuída à 36ª Vara Cível do Rio de Janeiro, alegando ter sido ofendida durante exercício de sua função. Seu pedido foi julgado improcedente pela juíza Andrea Quintela, que acatou a reconvenção (uma nova ação manuseada pelo réu em face do autor, quando a causa de pedir tem conexão com o pedido originário da ação) ofertada pelo réu, o juiz João Carlos de Souza Correa.
A agente de trânsito recorreu da decisão, mas seu apelo não foi acatado por José Carlos Paes, para quem a famosa "carteirada" não aconteceu, sendo perfeitamente natural que “ao se identificar, o réu tenha informado à agente de trânsito de que era um juiz de Direito”. Por isso, ele a condenou a indenizar o magistrado em R$ 5 mil.
Em uma entrevista dada à imprensa, Luciana desabafou:
"Como você encarou essa decisão da Justiça?
É complicado porque o servidor público está lá para fazer o certo. No acórdão, o desembargador (José Carlos Paes, da 36ª Vara Cível do Rio, que condenou Luciana)reconhece que o magistrado estava sem habilitação e num carro sem placa. Mas afirma que, naquela situação, eu é que agi com abuso de autoridade. É revoltante. Eu não sou legisladora. Não estou ali para a fazer a lei. Estou ali para cumpri-la, assim como todo mundo. Agora posso me prejudicar porque fiz o meu trabalho direito. Isso desmotiva.
Acha que no Brasil as pessoas são iguais perante a lei?
Se não são iguais, deveriam ser. Mas a gente vê que, principalmente aqui no Tribunal de Justiça do Rio, existe um certo protecionismo. Aqueles que nos julgam têm muito mais poder do que as pessoas comuns. E parecem estar acima das leis que aplicam.
Você pode relembrar o episódio com o juiz?
Ele foi parado (numa blitz no Leblon, em fevereiro de 2011) porque, provavelmente, carros sem placa chamam mais a atenção. Quando o policial pediu o documento, o juiz não tinha e disse que a esposa ia trazer. Ele estava com a nota fiscal do veículo. Expliquei que o prazo da nota já tinha passado e o carro teria que ser rebocado. Ele alegou que não sabia disso. Eu disse que ele não poderia alegar desconhecimento da lei para não cumpri-la e voltei para a tenda. Depois de um tempo, avisaram que uma confusão estava acontecendo lá fora. Estavam tentando impedir que levassem o veículo. O juiz queria que um tenente me desse voz de prisão, que me levasse para a delegacia. O tenente se recusou, e o juiz ligou para uma viatura. Os PMs da viatura tentaram me algemar e disseram que ele queria que eu fosse para a delegacia. Respondi que ele queria, mas não era Deus. Eles saíram e informaram ao juiz o que eu havia dito. Ele começou a gritar e me deu voz de prisão, dizendo que eu era muito abusada. Expliquei que, quando chegássemos à delegacia, ele deveria ter uma alegação plausível, já que isso configuraria prisão ilegal. Fomos então para a delegacia.
É comum as pessoas tentarem dar carteirada nas blitzes?
Há muita gente boa que elogia. Mas há de tudo. Uma moça se virou para mim e perguntou se eu sabia com quem eu estava falando. Respondi o mesmo. Depois que ela foi embora, me avisaram que era a mulher do "dono" do morro. Alguns acham que a gente quer prejudicar as pessoas, mas não é isso. Dizem que a multa é muito alta, e eu concordo. Mas não sou legisladora. Alguém tem que fazer esse trabalho. Se eu levo os carros dos mais humildes, por que não vou levar os dos mais abastados?
Você fez uma dissertação sobre ética na administração pública. Acha irônico que isso tenha acontecido com você?
Não. Podia ter acontecido com qualquer pessoa. E foi melhor que tenha acontecido comigo, porque eu trato todo mundo do mesmo jeito, independentemente de qualquer coisa. Eu trabalho do jeito certo e vou até o final. Não acho irônico. Faz parte.
Está assustada com a repercussão do caso?
Logo que aconteceu, fiquei um pouco assustada. Mas depois achei ótimo. O povo vê que a decisão está errada. Isso está me ajudando."
Situações como essa, acredite, ocorrem a todo momento, principalmente numa terra sem lei como é o Brasil, onde manda quem pode, obedece quem tem juízo. E boa parte dos incidentes, repito, têm como protagonistas justamente aqueles que deveriam zelar pelo respeito e boa aplicação das leis.
Já contei aqui a história envolvendo o desembargador Cairo Ítalo França David, à época lotado na 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro - TJRJ, que na madrugada do dia 26 de novembro de 2011 foi parado em uma blitz da Lei Seca realizada na Avenida Princesa Isabel, em Copacabana. O veículo onde ele estava, um Toyota Corolla, era dirigido por Tarcísio Dos Santos Machado, tenente do Corpo de Bombeiros do Estado do Rio de Janeiro - CBERJ cedido ao Tribunal, que se recusou a fazer o teste do bafômetro. Na ocasião, irritado, o desembargador xingou os policiais que estavam no local, e não satisfeito, deu voz de prisão a todos que estavam na blitz.
O próprio João Carlos de Souza Correa, em julho de 2009, discutiu com um policial rodoviário em Rio Bonito – RJ, depois que o seu motorista passou por um posto da Polícia Rodoviária Federal – PRF em alta velocidade e com um giroflex azul (luz de emergência giratória, usada por carros da polícia, por exemplo) no teto, o que contraria a legislação.
Anderson Caldeira, o policial rodoviário, explicou que quando o carro foi parado, o motorista desceu armado, mesmo procedimento adotado por Correa, que aos gritos o ameaçou, dizendo que era um juiz de Direito e que o colocaria na rua. A discussão foi parar na 119ª Delegacia de Polícia - Rio Bonito - RJ, cujo delegado, claro, lógico e evidente, aceitou registrar queixa contra o policial rodoviário, por desacato e exposição a perigo.
- O desacato é o crime cometido contra um servidor público no exercício de suas funções. Mas, eu que sou servidor público, também estava no exercício de minhas funções. E o perigo aconteceu, segundo o juiz, porque eu estava com minha arma em punho, numa posição de segurança. Parece que ele gosta de ameaçar e constranger as pessoas que tentam garantir a paz social. Aconteceu comigo e com a agente da Lei Seca - disse o policial, fazendo referência justamente ao caso de Luciana.
Antes disso, em 2006, o mesmo João Carlos de Souza Correa ameaçou de prisão um funcionário da concessionária Ampla caso a luz de sua casa, cortada por falta de pagamento, não fosse religada, fato confirmado pela assessoria da empresa, sem maiores detalhes, inclusive acerca do valor devido pelo juiz. Na ocasião, a polícia foi chamada e a luz religada.
Correa é (ou foi) investigado sigilosamente pela Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, por causa de uma série de decisões polêmicas tomadas em processos sobre disputas fundiárias em Búzios. Na ocasião, três magistrados da Corregedoria estiveram na cidade, acompanhados por outros dois da Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, e recolheram peças de 17 processos.
Numa das denúncias, João Carlos é (ou foi) acusado de um suposto favorecimento a um advogado que alegava ser o dono de uma área de mais de 5 milhões de metros quadrados em Tucuns, área nobre de Búzios.
Noutro caso, a Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro investiga (ou investigou), também sigilosamente, se o magistrado teria desrespeitado dois turistas que estavam hospedados no Hotel Atlântico – Morro do Humaitá - Búzios – RJ, perto da Orla Bardot.
O casal, um francês e uma alemã, teriam reclamado de uma festa promovida pelo Juiz, até de madrugada, num dos quartos do hotel. Um dos gerentes do estabelecimento confirmou as reclamações, esclarecendo que tudo voltou ao normal depois que a direção do hotel chamou a atenção do responsável pela festa. Outro hóspede, o empresário e advogado Marcelo Bianchi, contou que o casal foi destratado pelo juiz.
Releva registrar, por fim, que João Carlos tem registradas em seu nome sete multas de trânsito, que somam 28 pontos em sua carteira de habilitação. Seis delas estão vencidas e não foram pagas. Somadas, as multas chegam a R$ 2.330,39. De acordo com o Código de Trânsito Brasileiro, o motorista que acumular 20 pontos na carteira no período de um ano tem o direito de dirigir suspenso.
A grande verdade é que o juiz João Carlos de Souza Correa descumpre e agride a lei desde 2006, mas continua no cargo, usando sua poderosa carteira para constranger e humilhar cidadãos de bem, na maioria das vezes, eles, sim, no exercício de suas funções. Sei, por ouvir dizer e conviver diariamente com o fato, que a Justiça tarda. Alguns dizem, pura mentira, que ela não falha. Demorada ou infalível, não importa. O que queremos saber é a quantas arbitrariedades a sociedade ainda vai ter que assistir até ver punido o agente público que lhe deveria servir de exemplo? Afinal, somos ou não iguais perante a lei?
Carlos Roberto de Oliveira é advogado estabelecido em Nova Iguaçu - RJ. A criação do Dando Pitacos foi a forma encontrada para entreter e discutir assuntos de interesse geral. |