07 outubro 2010

"CHOREI DESCRENTE DA PROFISSÃO QUE ESCOLHI"

Os textos muito longos são normalmente desprezados pelos leitores que viajam pela internet. Esse é um texto longo que eu gostaria que você lesse por completo, nem que isso seja feito aos poucos. É uma história dramática, mas bem conhecida por esse Brasil enorme. Hoje é a história de um alguém distante, mas amanhã pode ser a sua, a minha, a nossa história. Ela nos mostra a omissão e o descaso com o ser humano, mas deixa uma ponta de esperança, por mais paradoxal que isso possa parecer, no próprio ser humano, o médico, o profissional de uma classe que nos habituamos a criticar.


A menina Ana Larissa Menezes Baptista, de apenas 8 anos de idade, morreu no dia 24 de agosto último, uma terça-feira, no Hospital Geral do Estado, na Bahia - BA, depois de ter passar por três outras unidades públicas. As pediatras Heloísa Cunha Silva, Antônia Maria Dias Aleluia e Alderiza Ribeiro Jucá Rocha, do Hospital Geral Roberto Santos – HGRS, são acusadas de ter negado atendimento à criança.

Até aí, nada de novo, porque esse é o retrato da saúde no Brasil inteiro, e a Bahia não é exceção. A grande novidade, o detalhe mais importante dessa história de dor e desprezo pela vida humana, é que quem acusa as profissionais médicas é o também médico Vinícius Viana Bandeira Moraes, responsável pela transferência da pequena Larissa na ambulância da Central Estadual de Regulação - CER.

E não é só isso! A denúncia é oficial e escrita. Em carta enviada ao Conselho Regional de Medicina da Bahia – CREMEB, o jovem Vinícius, que é médico do Estado, faz um relato emocionado, detalhando como a menina morreu, depois que três pediatras de um hospital público, profissionais médicas como ele, a ela negaram atendimento. A menina faleceu por causa de Acidente Vascular Cerebral - AVC, depois de enfrentar uma maratona de quase 12 horas perambulando por quatro unidades de saúde do Estado. O documento vazou e agora circula na internet.

- Eu nunca precisei da saúde pública, mas, quando precisei pela primeira vez, acabei perdendo uma filha – revelou, chorando, o empresário Carlos Elísio Lemos Baptista, pai da menina, em entrevista à imprensa local, junto com a esposa, Sílvia Carolina Menezes de Santana Baptista.

O Ministério Público da Bahia e o Conselho Regional de Medicina, que como nos outros Estados da Federação, nada fazem para prevenir esse tipo de ocorrência, preferindo a tranca de ferro na porta arrombada, abriram investigações para apurar as denúncias contra as pediatras, baseados na carta do médico Vinícius Viana Bandeira Morais.

A assessoria de imprensa do hospital informou que o diretor da unidade abriu sindicância para apurar as denúncias e pediu a instauração de investigação à superintendente de atenção integral da Secretaria Estadual de Saúde – SESAB.

Na carta escrita ao Conselho Regional de Medicina, o doutor Vinícius conta como foi a luta para tentar salvar a vida de Larissa, desde o momento em que a transferiu do Hospital São Jorge para o Roberto Santos. Numa narrativa comovente, ele diz que viveu um “show de horrores” e que após a morte da menina, ele e Lidysi, a enfermeira, chorando, voltaram para a Central Estadual de Regulação – CER.

A carta é longa, mas deveria ser leitura obrigatória para todos os cidadãos brasileiros, até porque ela revela três fatos de suma importância na vida de todos nós: o primeiro e o segundo, como já destaquei linhas acima, são a vergonhosa situação da saúde no Brasil e o descaso como é tratada a vida humana, e o terceiro é a grata surpresa de encontrar um cidadão de coragem e profissional médico sensível à dor de seus semelhantes, o que é raro nos dias atuais.



"Salvador, 24 de agosto de 2010,

Inicialmente quero dizer que não acredito, acreditem, que este texto possa mudar qualquer das barbaridades que vivenciei nessa madrugada. Acreditem, não acredito que encontrarei eco em algum lugar. Preciso, entretanto, falar.

Por volta de 22h30min da última segunda-feira, 23 de agosto de 2010, fui contactado pela Central Estadual de Regulação (CER) para realização do transporte da menor, Ana Larissa Menezes Baptista. Ao me dirigir à mesa do chefe do plantão para pegar a ficha de atendimento para o transporte inter-hospitalar fui informado que deveria transportar a paciente supracitada do Hospital São Jorge (HSJ) para o Hospital Geral Roberto Santos (HGRS) para a realização de tomografia computadorizada (TC) de crânio.

A história que ouvi era a de uma paciente em estado grave, no pronto atendimento (PA) do HSJ, em ventilação mecânica (VM), usando adrenalina e dobutamina, após ter sido reanimada ao dar entrada naquela unidade por volta das 18h. Como de costume, solicitei ao chefe de plantão – Dr. Jisomar - e à médica que fora responsável pela regulação, cujo nome me foge nesse momento, que mantivessem contato com o chefe de plantão da emergência do HGRS naquele dia – Dr. Raimundo – ratificando o quadro clínico da paciente e solicitando ao mesmo que verificasse as condições da sala da TC a fim de que a transferência fosse feita no menor tempo possível e Ana Larissa não fosse exposta a qualquer entrave que prejudicasse ainda mais o seu quadro que, naquele momento, já era grave.

Informei ainda ao Dr. Jisomar que não realizaria o exame caso o HGRS não possuísse um ventilador disponível na sala de bioimagem ao qual a paciente pudesse ser conectada. Informei ao mesmo que muitos coordenadores do HGRS tinham o hábito de autorizar a regulação de pacientes em VM para a realização de TC sem ao menos confirmarem a existência de ventilador na bioimagem. Informei ainda que por diversas vezes "ambuzei" pacientes que precisavam realizar TC em respeito aos mesmos, bem como aos seus familiares. Disse-lhe ainda que por diversas vezes, sensibilizado com o quadro, e com a necessidade dos pacientes, aceitei fazê-lo, mas que não estava disposto a novamente solucionar um problema que deveria ser resolvido antes da regulação. Dr. Jisomar informou-me que Dr. Raimundo sabia do quadro da paciente, mas que tentaria manter novo contato e que ratificaria o meu pedido.

Em virtude da gravidade do quadro de Ana Larissa resolvi sair da base da CER para realizar o transporte o quanto antes. Ao chegar ao HSJ fui recebido por Dra. Danielle Souza, CREMEB 20.733, pediatra de plantão, que relatou a história de Ana Larissa. Segundo ela, a paciente há cerca de uma semana havia sido atendida numa emergência após episódio de vômito, febre e cefaléia. Naquela oportunidade, a paciente foi submetida à punção liquórica que descartou meningite. Após remissão do quadro na emergência, a menina recebeu alta e evoluiu em casa por quase cinco dias assintomática. Naquela manhã, 23 de agosto, entretanto, Ana Larissa demorou a acordar, fato que chamou a atenção dos seus familiares.

No meio da tarde a menina apresentou crise convulsiva e rebaixamento do sensório sendo levada ao Hospital Menandro de Farias (HMF). Após ser atendida naquele hospital, Ana Larissa foi encaminhada para o Hospital Couto Maia (HCM) em ambulância convencional, acompanhada pela mãe e por uma técnica de enfermagem. Segundo Dra Danielle, a mãe relatou que no caminho Ana Larissa apresentou piora do estado geral, com cianose central e ausência de "reflexos". O motorista da ambulância resolveu então parar no hospital mais próximo, tendo chegado ao HSJ. Ao dar entrada na unidade, a menina apresentava de fato cianose central e ausência de batimentos cardíacos.

Foi, então, reanimada com adrenalina e massagem cardíaca e submetida à intubação orotraqueal. Desde então, a paciente encontrava-se em uso de Adrenalina (0,5) 1ml/h e Dobutamina (5) 1,5 ml/h e em ventilação mecânica. Naquele momento, Ana Larissa apresentava Glasgow 3, midríase paralítica bilateral, freqüência cardíaca (FC): 165bpm, pressão arterial (PA): 104X41 (62 mmHg), oximetria de pulso indicando SpO2: 99%, em VM, com PEEP: 5/ PI: 15/ FAP: 22 e FiO2: 60%. Preparamos a paciente para o transporte e nos dirigimos ao HGRS. Todo o transporte até o HGRS transcorreu sem qualquer intercorrência. Fomos acompanhados por Dona Silvia, mãe de Ana Larissa.

Ao chegar à porta da emergência pediátrica solicitei à enfermeira que me acompanhava, Lidysi, que verificasse na sala da TC se tudo estava preparado para a realização do exame, conforme combinado, para que só assim eu pudesse descer da ambulância com Ana Larissa. Após retornar da bioimagem, Lidysi informou-me que não existia ventilador preparado e que a técnica de radiologia nem mesmo sabia que esse exame seria realizado. Resolvi, então, descer da ambulância com Ana Larissa para realizar o exame, mais uma vez em respeito à sua mãe que chorava e rogava a Deus pela melhora de sua filha e por ela - uma menina de oito anos que até a manhã daquele 23 de agosto de 2010 era apenas uma menina saudável e feliz. Entrei, então, na sala de TC e pedi a técnica de radiologia que fizesse o exame no menor tempo possível.

Informei-lhe que aquela paciente estava regulada, que Dr. Raimundo estava ciente da necessidade da realização do exame e que assim que terminássemos o mesmo eu retornaria à ambulância, conectaria Ana Larissa ao ventilador da UTI móvel da CER e solicitaria aos médicos de plantão que fizessem a solicitação da TC de crânio a fim de que o filme pudesse ser liberado. Após compreensão da técnica de radiologia, vesti uma capa protetora de chumbo e "ambuzei" por cerca de 5 minutos Ana Larissa dentro da sala da bioimagem, durante a realização da TC. Após retornar à ambulância, solicitei a Lidysi que informasse à pediatra de plantão do caso que já estava regulado e que pedisse a ela para ir até a ambulância conversar comigo, visto que eu assistia Ana Larissa e que a mesma encontrava-se em VM, necessitando, pois, de um ventilador e em uso de Adrenalina e Dobutamina em bombas de infusão, as quais não deveriam ficar muito tempo fora das tomadas para não descarregar.

Caso fosse impossível a vinda da mesma à ambulância, que ela fizesse então a solicitação da TC de crânio para que pudéssemos ter acesso ao filme impresso. A médica, Dra. Antonia Aleluia – pediatra de plantão -, resolveu então apenas solicitar a TC de crânio. Lidysi foi então ao setor de bioimagem e recebeu o filme da TC de crânio de Ana Larissa após entregar a solicitação do exame. Ao retornar à ambulância com a TC de crânio identifiquei um acidente vascular cerebral hemorrágico (AVCH) extenso, com sinais de sangramento intraventricular. Pedi novamente à enfermeira que mantivesse contato com Dra. Antonia Aleluia e que solicitasse a ela um encaminhamento para avaliação neurocirúrgica, visto que eu havia identificado um AVCH extenso.

Dra. Antonia informou a Lidysi que não faria qualquer solicitação visto que a paciente deveria ter sido regulada com tal pedido. Ora, tínhamos uma paciente com um AVCH extenso dentro do HGRS e ela não seria avaliada por um neurocirurgião porque no seu pedido de regulação não havia essa solicitação? Para quê então precisávamos da TC de crânio, se não para direcionar, os nossos próximos passos? Precisaríamos então prever que Ana Larissa tinha indicação neurocirúrgica para só assim levá-la ao HGRS? Essas foram questões colocadas por mim para a plantonista supracitada a fim de sensibilizá-la para o que estava acontecendo ali, tudo sem qualquer efeito. Direcionei-me então por conta própria à emergência do HGRS, atrás de algum neurologista que desse o direcionamento adequado à Ana Larissa. Encontrei, então, Dra. Miriam Sepúlveda, CREMEB 3784, neurologista de plantão do HGRS. Mostrei a ela a TC de crânio e a mesma informou se tratar de um AVCH.

Disse-me que a paciente precisava de uma vaga em UTI pediátrica e de avaliação neurocirúrgica. Questionei a ela sobre a possibilidade de Ana Larissa ser admitida e ela me informou não ser a responsável por resolver essa questão. Disse-me que mantivesse contato com Dr. Raimundo ou Dra. Paula (coordenadora da emergência pediátrica, segundo ela). Mantive contato com Dr. Jisomar para colocá-lo a par do que ocorria e ele me pediu que aguardasse até que conseguisse falar com Dr. Raimundo. Paralelo ao tempo que aguardava o contato mencionado, procurei por Dr. Raimundo na sala da coordenação médica do HGRS, sem sucesso. Encontrei-o, entretanto, na sala de repouso da equipe médica. Coloquei-o a par de tudo que acontecia e da necessidade de avaliação neurocirúrgica da paciente. O mesmo informou-me que esse não era o acordado com a CER e que eu deveria procurar a plantonista da pediatria para saber se seria possível aceitar Ana Larissa naquela unidade. Lembrei a ele, porque imaginei que ele tivesse esquecido, que aquele era um hospital de referência para avaliação neurocirúrgica. Ainda assim, Dr. Raimundo me disse que fosse à emergência pediátrica resolver com quem estivesse de plantão por lá o que seria feito.

Entrei em contato com Dr. Jisomar que me orientou a de fato permanecer com Ana Larissa no HGRS. Ele me orientou a informar à plantonista que Ana Larissa ficaria no hospital, a procurar um ponto de oxigênio dentro do PA do HGRS e disse-me que se fosse preciso montasse o ventilador da UTI móvel no PA da pediatria do HGRS. Procurei então a pediatra do plantão, Dra. Antonia Aleluia, mas não a encontrei dentro do PA. Consegui apenas falar com Juliana, enfermeira que estava de plantão naquela unidade, e pedi a ela que mantivesse contato com Dra. Antonia informando-a das orientações que eu havia recebido. Juliana me informou que falaria com Dra Antonia e que ela me encontraria na entrada do PA.

Fui então à ambulância retirar Ana Larissa. Descemos com toda monitorização que fazíamos – monitor Dixtal, torpedo de oxigênio, ambu, oxímetro, cardioscópio e manguito de PA não invasiva, bem como com duas bombas de infusão para adrenalina e dobutamina. Encontramos com Dra. Antonia na porta da emergência pediátrica. A partir dali, seguiu-se um show de horrores que foi iniciado por Dra. Antonia e seguido por Dra. Heloísa, uma segunda plantonista com a qual, poucos minutos mais tarde, eu tive a infelicidade de cruzar. Dra. Antonia, se posicionando na porta de entrada da emergência, me disse de maneira ostensiva, e num tom inapropriado para a situação, que não tinha lugar para aquela paciente ali. Disse-me ainda que eu enganava os familiares de Ana Larissa e que ali eles não fariam nada por ela. Disse-me que sairia do plantão e o deixaria sob minha responsabilidade.

Eu a informei que havia sido orientado que Ana Larissa deveria permanecer no HGRS. Após se retirar da porta, fato que impedia minha passagem, entrei no HGRS. Direcionei-me à sala de reanimação, onde existiam dois ventiladores mecânicos que não estavam sendo utilizados, para então instalar Ana Larissa. Nesse momento, fui então surpreendido por Dra. Heloísa Cunha que aos gritos insultou-me. Dizia ela que eu estava acostumado a chegar naquela unidade e deixar os pacientes por lá, mesmo sem que fosse possível recebê-los.

Dizia, ainda, que eu havia sido expulso daquela unidade há alguns dias por um neurocirurgião. Eu retruquei, informando-a que aquilo não era verdade. Lembrei-lhe que na oportunidade à qual ela se referia eu trazia uma paciente, vítima de atropelamento, do Hospital Ernesto Simões Filho. Disse-lhe que a paciente em questão estava regulada para o hospital e que não era meu papel levá-la à sala de TC, muito menos ao Centro Cirúrgico, após a realização da mesma, como eles desejavam. Fiz-lhe lembrar que, ainda reconhecendo naquele dia não ser minha função dar encaminhamento dentro do HGRS à paciente, aceitei fazê-lo em respeito à paciente e aos seus familiares, e nunca em consideração a ela ou ao neurocirurgião ao qual ela se referia. Aos gritos, completamente desequilibrada, a Sra. Heloísa Cunha tentou expulsar-me da unidade. O que se ouvia nos corredores eram gritos de: "saia", "saia", "saia". Naquele momento, muitos dos acompanhantes dos pacientes que estavam naquela unidade correram para assistir o tumulto que se seguiu.

Eu disse a Sra. Heloísa Cunha que aquele comportamento não era adequado a alguém que assumia o papel de plantonista daquela unidade e que só poderia continuar a tratar com ela se a mesma fosse medicada e contida. Disse-lhe que a identificava como uma Sra. em surto psiquiátrico. Ela então se virou para a mãe de um dos pacientes que ocupava aquela sala e lhe disse que eu queria que o filho dela morresse, que eu estava ali trocando a vida do filho dela pela vida de Ana Larissa. Pediu a ela que saísse da maca para que eu colocasse Ana Larissa. Aos gritos dizia: "vou dar uma queixa sua no Cremeb, você vai pro Cremeb". Após o paciente ter saído da maca, ela, ainda em surto, batia na mesma dizendo: "venha, coloque a sua paciente aqui", "venha, eu já tirei o meu "mal epiléptico" da maca pra que você coloque a sua paciente aqui", "venha". Após todo esse escândalo, ela se retirou da sala e pediu às suas colegas que não ficassem ali até que eu deixasse aquela unidade. Os pais de Ana Larissa, Sr. Carlos e Sra. Silvia pediram a ela que tivesse piedade da filha deles e ela aos gritos os expulsou de lá.

Disse a eles que fossem chorar lá fora, que ali não era lugar para que eles ficassem chorando. Sr Carlos se dirigiu a mim então e chorando me disse: "Dr. pelo amor de Deus, não deixe minha filha com ela", "Dr. como minha filha vai ficar aqui com essa "médica"?" Eu disse a ele que jamais sairia dali até que alguém em condições psíquicas assumisse aquele caso. Liguei para Dr. Jisomar e coloquei-o a par do que estava acontecendo, o mesmo ao telefone ainda ouvia os gritos enlouquecidos da Sra. Heloísa Cunha. Solicitei então a Lidysi que trouxesse o ventilador da UTI móvel para que eu o montasse naquela unidade e não os deixasse sem ventilador, a despeito de lá existirem dois ventiladores que não estavam sendo usados. Enquanto eu montava o ventilador e Lidysi "ambuzava" Ana Larissa, a Sra. Heloisa, novamente aos gritos dizia: "nunca mais você vai voltar aqui", "eu tenho quatro plantões noturnos aqui", "não apareça mais aqui", "saia das fraldas", "saia das fraldas". Eu repeti insistentemente que ela estava em surto, e disse a ela que voltaria ao HGRS quantas vezes fosse preciso.

Disse-lhe que havia recebido uma determinação para entrar com Ana Larissa naquela unidade e que a criança precisava de uma avaliação com um neurocirurgião. Ela foi novamente arrastada para outra sala dentro do PA por suas colegas que de certo já conheciam o seu temperamento descontrolado. Nesse momento, Dr. Raimundo já se encontrava no local e negou ter autorizado a regulação de Ana Larissa para aquela unidade, colocando-se ao lado das pediatras. Informei à terceira plantonista da pediatria que apareceu, Dra. Alderiza Jucá, que anotaria o nome das três médicas plantonistas da unidade pediátrica e que faria um documento para solicitar a quem de direito a apuração destes fatos que acima citei. Nesse momento, Dr. Jisomar me ligou informando que Dr. Marcos do Hospital Geral do Estado (HGE) havia aceitado a transferência da paciente para aquele hospital. Informei então à Dra. Alderiza Jucá que Ana Larissa seria encaminhada ao HGE. A Sra. Heloisa Cunha após ouvir o comunicado entrou novamente na sala de reanimação e novamente aos gritos questionava: "posso devolver meu mal epiléptico pra maca?", "posso?", "posso?". Disse a ela que sob minha ótica ela não poderia jamais estar tratando de ninguém naquela condição de desequilíbrio, mas que não cabia a mim proibi-la, ou autorizá-la, a fazer qualquer coisa.

Ela então aos gritos me disse: "vá e não volte", "você está saindo porque está com medo", "você está com medo". Eu disse a ela que não tinha condição de continuar tentando ouvi-la e que estava realmente de saída em benefício de Ana Larissa, já que eu não teria nenhuma condição de deixá-la sob a responsabilidade de alguém que não demonstrava controle emocional como ela. Disse aos pacientes que estavam ali que lamentava que eles estivessem sendo tratados por uma Sra. em surto psiquiátrico. Deixei, então, a unidade de emergência do HGRS em direção ao HGE por volta de 03h. Cheguei ao HGE às 03h15min da madrugada de 24 de agosto de 2010 e fui recebido de maneira bastante cordial por Dra. Ilana Rodrigues, CREMEB 8213, que prontamente pediu avaliação do neurologista.

Informei a ela o quadro da paciente e que Ana Larissa apresentava midríase paralítica bilateral, FC: 148bpm, PA: 79X45 (56 mmHg), SpO2: 99%, em VM, com FiO2: 100%. O neurologista, após examinar a paciente e avaliar a TC de crânio, informou aos pais que abriria o protocolo de morte encefálica para Ana Larissa. Após a notícia todos choraram dentro do PA do HGE. Ao fim, me despedi dos pais de Ana Larissa e fui abraçado pelos dois que me agradeceram por todo empenho durante aquelas mais de quatro horas de transporte. Ao sair do HGE e entrar na ambulância da CER fui novamente abordado pelos familiares de Ana Larissa que novamente nos agradeceram o empenho na resolução daquela história.

Deixamos o HGE por volta das 03h45min e fizemos, eu e Lidysi, o caminho de volta até a CER chorando por termos presenciado, e vivido, tanto sofrimento durante àquelas horas infindáveis. Chorei como há muito não fazia. Chorei destruído com a confirmação do quão frágil é a vida humana. Chorei lamentando que uma menina de oito anos tenha partido de maneira tão repentina. Chorei invadido pelo choro daqueles pais que me abraçaram agradecidos e reconheceram, num momento de perda, o nosso trabalho. Chorei porque encontrei tanta gente, que atende tantas outras gentes, sem estar de fato compromissada com isso. Chorei porque novamente vi um ser humano ser tratado como um problema, um problema cuja paternidade ninguém quis assumir. Chorei porque encontrei a Sra. Heloísa Cunha e toda a sua falta de amor, toda a sua mágoa frente à vida, todo o seu descaso e sua insensibilidade. Chorei porque encontrei abandono, desrespeito e incompreensão. Chorei porque tudo o que já era tão doído se tornou ainda pior tamanha as barbaridades que vi e ouvi. Chorei como nunca. Chorei descrente da profissão que escolhi.

Termino esse desabafo reafirmando que não acredito em mudanças reais. Os protagonistas desse drama continuarão por lá, pelos corredores do HGRS, pelos corredores de tantos outros hospitais públicos. Eles continuarão humilhando os mais necessitados - os fragilizados pela falta de saúde e de saída -, continuarão tentando intimidar os mais esclarecidos que se opõem às suas arbitrariedades. Esse desabafo existe, entretanto, para registrar a minha indignação frente a tudo isso. Seja você que me lê um instrumento de Deus por aqui. Coloque-se no lugar daquela família que perdeu uma filha e que presenciou tanto abandono. Sinta-se tocado por aquela dor e repense suas atitudes frente à vida, frente aos vivos. Tente fazer diferente. E, sobretudo, ame quem quer que seja e tenha a sorte de ser amado como eu sou. Só assim, experimentando a libertação, a salvação que é ser amado, você possa, então, ser amor nesse mundo.


Vinícius Viana Bandeira Moraes – CRM/BA: 18.761
Médico Intervencionista da Central Estadual de Regulação"

Sobre o Autor:
Carlos Roberto Carlos Roberto de Oliveira é advogado estabelecido em Nova Iguaçu - RJ. A criação do Dando Pitacos foi a forma encontrada para entreter e discutir assuntos de interesse geral.

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12 comentários:

  1. Só há uma coisa errada com essa carta.

    "Acreditem, não acredito que encontrarei eco em algum lugar."

    Errou, Dr. Vinícius. Vai ter eco sim. Eu já estou repassando ao maior número de pessoas que eu posso.

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  2. Ah Roberto!
    Li todo este depoimento deste Dr. Vinícius, um como tantos médicos que tem consciência do respeito que devem à sua profissão e aos seres humanos. Já tive oportunidade de entrar em um hospital público em Florianópolis, com meu marido, pela manhã e esperar com ele até por volta de 18 hs, até ser atendido, quando então o cardiologista queria interná-lo. Como vi a falta de condições naquele hospital, levei meu marido de lá, disfarçando minha ansiedade e apreensão e o internei na manhã seguinte em outro hospital particular,por meio de um convênio, que, por termos pago menos do período para permitir cirurgia, ainda tive que lutar com médicos e convênio para conseguir.(consegui, e recebi algum apoio de um dos médicos que lutou comigo junto ao convênio p/ que este se responsabilizasse pelo pagamento). Meu marido entrou direto para a UTI, onde ficou até ter condições de fazer a cirurgia( 5 pontes no coração). Sei que há médicos e enfermeiras/os heróicos nestes hospitais, onde a falta de condições os fazem aos poucos, descrerem de sua capacidade de atender bem a outro ser humano. Com o tempo, acabam se habituando com o absurdo e, por vezes atendem mal, pressionados pelo que são obrigados a ver diàriamente. Para continuarem na profissão, muitos se "desligam" de tudo,sentindo-se impotentes diante dos absurdos. Outros porém abusam e não deveriam estar lá.
    Há maus profissionais em todo lugar, porém, acho que o problema mais sério é como sempre digo, a impunidade que mantém o sistema político, que permanece como células cancerígenas a destruir a humanidade e dignidade do povo que paga seus impostos, deveria e poderia ter atendimento decente em todos os sentidos e não tem, porque nosso dinheiro é roubado, todos sabem e nada se faz para obrigar os "fulanos" a se redimirem, devolverem aquilo de que se apropriaram indevidamente ou até para que fossem punidos com a mesma lei que parece ser aplicada só aos que não detém o poder.
    Muito triste isto e é exatamente o que me desespera. Educação e saúde deveria ser um bem, recebido por toda gente deste país.
    Abraço grande, meu amigo.
    É por isto que não posso confiar neste governo ( e nem em uma sua representante) que quer se perpetuar, fazendo de conta que nada sabe e nada vê daquilo que está batendo em nossa cara todos os dias!
    Vera.

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  3. É isso, AnaKris!

    Eu também, além da postagem, vou mandar e-mails pra todo lado!

    Um beijão...

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  4. Minha querida Vera:

    É muito bom, apesar dos radicais da política, lidar com gente esclarecida, com quem não se nega a enxergar o óbvio. A situação da saúde em todo o Brasil é uma vergonha. As tais UPA's que ajudaram a eleger Sergio Cabral no Rio de Janeiro são bonitas de se ver, por fora, porque lá dentro nada funciona.

    O caso da menina Larissa aconteceu na Bahia, que reelegeu seu governador no primeiro turno! Como explicar isso?

    Ainda bem que pelo menos uma coisa se salvou nessa história: o médico Vinícius Viana Bandeira Moraes, um legítimo defensor da vida.

    Só espero que os culpados sejam punidos, e que ele, porque denunciou a omissão, não seja perseguido pelos próprios colegas.

    Um grande abraço...

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  5. Elayne...
    Também passei por algo parecido. Levei uma irmã ao Hosp. Distrital Nossa Senhora da Conceição, Fortaleza, CE às 7 da manhã e qdo foi às 23h solicitei ao serviço social a retirada dela daquele hospital, pois ninguém lhe ajudara, além de lhe tratar muito mal. minha irmã implorava:" me tire daqui senão vou morrer nas mãos dessas pessoas", principalmente de uma enfermeira que usava no jaleco o nome DOUTORA. retirei-as sob lágrimas, inclusive da ass. social, que lamentava muito tudo aquilo e no outro hospital(maternidade escola)ela foi pra cirurgia urgentemente com um cisto de 8cm que havia rompido seu ovário e comprometido a trompa direita, retirou-os aos 20 anos. Também não acredito na saúde pública brasileira.

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  6. ola ,amado dr o senhor é um verdadeiro cidadao dos ceus pois fez de tudo que podeira para resgatar a pequena paciente ,que por falta de misericordia de pessoas desumanas como essas que vc apresentou neste triste cenario de horror
    lhe foi tirado o direito de viver .porem eu acredito que o mundo inteiro tem orgulho de um medico humano como o senhor ,e oque eu te digo é que nao desista e nao nos abandone e saiba que para cada 1 motivado existem 100 desmotivados tentando fazer vc desistir ,mas que agraça de Deus a misericordia e o amor numca saia de seu coraçao e conte com minhas oraçoes um abraço do seu irmao em Cristo pr roger

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  7. Belas palavras, Roger!

    Seria muito bom se o Dr. Vinícius Viana pudesse ler o que você escreveu, pois assim poderia perceber que a denúncia que ele fez, ao contrário do imaginado, está chegando às pessoas de bem, que sempre têm palavras de apoio e incentivo.

    Valeu, Roger!

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  8. Minha querida Elayne:

    A sua história, pode acreditar, é igualzinha à contada nos quatro cantos do Brasil por milhares de cidadãos como você. Nos Estados do Norte e Nordeste então, a situação é muito pior, o abandono, a omissão e o descaso são muito maiores.

    O povo, ao invés de se deixar enganar pela publicidade maravilhosa dos partidos deveria se lembrar disso na hora do voto. Aliás, uma grande oportunidade de demonstrar o nosso descontentamento se aproxima: 31 de outubro é o dia certo para devolver aos políticos, ATRAVÉS DO VOTO, o tratamento desumano que recebemos.

    Você só não disse como está a sua irmã. Ficou tudo bem?

    Um abração...

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  9. Olá Senhores, após alguns meses essa mensagem chegou ao meu conhecimento, e a única coisa que eu gostaria de ressaltar é que em milhares de outros casos semelhantes, um médico protegeria o outro e jogaria o lixo (paciente) pra debaixo do tapete vermelho que está estendido para o desfile dos doutores, que muitos nem sequer têm doutorado, mas exigem a patente do pronome de tratamento. Mas neste caso o médico Vinicius cometeu um gravíssimo erro diante do conselho e de seus colegas de profissão que foi a tão comentada FALTA DE ÉTICA. Na minha opinião, ele foi ÉTICO, ético com a vida, ético com a profissão e os pricípios por ele escolhidos. Devemos acabar com essa palhaçada de não comentar os erros dos colegas de medicina, está na hora de abrir a boca e falar, então haverá uma seleção natural e saberemos realmente quem é MÉDICO e quem é COMERCIANTE do produto mais nobre que existe, A VIDA HUMANA.

    José Cardoso
    cardoso_fo@hotmail.com

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  10. É isso, José Cardoso!

    O corporativismo precisa acabar. Só deve sobreviver o profissional responsável, ético, principalmente quando a "mercadoria" é a vida de seres humanos.

    Um grande abraço e obrigado pela sua participação...

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  11. Sou pai de médicos, e assim, com "conhecimento de causa", posso dizer: COITADO DO MÉDICO VINICIUS MORAES!

    Sim, digo, coitado, porque ele me parece recente na profissão e, portanto, não conhece as, digamos, nuances diversas das interpretações que os CRM's dão a casos que tais, que lhes são encaminhados para "julgamento".

    A opinião pública é racional e humana, mas a opinião dos CRM's na maioria das vezes envereda por caminhos outros. Suas conclusões chegam a ser incompreensíveis (e inaceitáveis!) para os, como eles nos chamam, leigos. Os "Conselhos" não conseguem se focar nas razões humanas, priorizam apenas a tal "ética profissional" que, por absurdo que seja, SEMPRE deixa subliminado o apelo corporativo.

    Este, com certeza, vai ser só mais um "julgamento", e a conclusão será francamente contrária ao Médico Vinicius Moraes, ademais porque ele é jovem e está só, e na "outra parte" tem três "médicas conceituadas"... e mais o Governo do Estado da Bahia. Que pena! É a luta de uma formiga contra uma manada de elefantes! Por isso, afirmo: COITADO DO MÉDICO VINICIUS VIANA BANDEIRA MORAES! Vai ser punido, com certeza... e para não ser destruido profissionalmente vai gastar muito dinheiro com Advogados especializados.

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  12. Meu querido amigo "Anônimo":

    Não posso dizer que não concordo com o seu ponto de vista, com a sua visão "realista" da situação criada pelo Dr. Vinicius.

    Sou advogado e tenho certeza, como você bem disse, que "é a luta de uma formiga contra uma manada de elefantes", até porque, e aqui também você foi perfeito, "os "Conselhos" não conseguem se focar nas razões humanas, priorizam apenas a tal "ética profissional" que, por absurdo que seja, SEMPRE deixa subliminado o apelo corporativo".

    Só acho que não podemos esquecer de David e Golias. O improvável não é impossível, e alguma coisa tem que começar a ser feita, em algum momento, contra a camarilha que hoje se estabeleceu em todas as nossas instituições, principalmente as políticas.

    A voz das ruas, "racional e humana" como você disse com propriedade, pode fazer a diferença e vai fazer a diferença em algum momento. Precisa fazer, senão teremos sido derrotados! Senão não terá valido a pena ser ético, justo e reto!

    Seu comentário, sem nenhuma dúvida, veio enriquecer a nossa postagem. Por isso agradeço a sua participação!

    Um grande abraço...

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