11 abril 2010

Uma história real



ANA KRISTINA é minha parceira aqui no DANDO PITACOS. Você, amigo leitor, pode não acreditar, mas não nos conhecemos pessoalmente. Somos apenas "amigos virtuais", o que não impede que eu tenha por ela profunda admiração, respeito e carinho. Interessante, não? Falam tantas bobagens sobre a internet...

Além dos "pitacos" postados aqui, ela tem outro blog, o ESTRADA DO BEM, onde hoje fui surpreendido pelo texto intitulado "Chuvas no Rio - O dia em que perdi e reencontrei a fé".

Não sabia que ela tinha passado pela situação narrada no post. Confesso que no início da leitura até achei tudo muito engraçado, porque me lembrei de uma montagem de capa da revista NATIONAL GEOGRAPHIC (a mesma que ilustra esta postagem) que um amigo fez prá ela com o título: "Ana Kristina sobrevive a inundação do Rio", mas no final da leitura acabei me arrependendo do riso inicial. Senti, isso sim, uma grande tristeza pelo drama que ela enfrentou, sozinha, no caminho de casa. Sua narrativa me emocionou, e porque uma história real, semelhante, com absoluta certeza, à de milhares de cidadãos cariocas que enfrentaram o problema, resolvi postá-la aqui. Mais que um protesto, é o lamento de uma cidadã que paga impostos, e por isso mesmo deveria ter um pouco mais de proteção do alcaide que os arrecada.

Nem sei se ela vai aprovar minha iniciativa, mas eis o texto:

"Vamos lá. Vamos à história do pior dia da minha vida até agora.

Sabe aqueles dias em que nada dá certo? Meu agendamento no DETRAN deu errado, não consegui consertar o meu telefone celular novinho. Fui preterida numa disputa para um trabalho que parecia feito sob medida para mim... Tudo e mais um pouco, com direito a chororô no banheiro e tudo mais. Confesso que, juntando tudo o que vem acontecendo na minha vida nesses últimos meses, eu havia perdido a fé em Deus (pelo menos, por algumas horas).

Mas a reviravolta não custou muito a chegar. Saí do trabalho às 7 da noite. Estava chovendo, mas não muito forte. Estranhei a ausência de ônibus circulando e decidi andar até à Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro. Como via obrigatória de ligação entre as zonas Norte e Sul lá provavelmente haveria grande oferta de ônibus para todos os lugares.

E realmente havia... mas os ônibus não saíam do lugar. Resolvi continuar andando para ganhar tempo, mas a maior característica do Rio de Janeiro se fez presente: pivetes e marginais mais taludinhos começaram a assaltar os transeuntes (adoro essa palavra). O golpe de sempre – vítimas preferidas do sexo feminino que eles podiam abraçar como namorados e lhes tirar a bolsa antes de sair correndo.

Resolvi não arriscar e entrei num ônibus que me servia. Sentei e resolvi relaxar para esquecer o dia. Dormi, sonhei, acordei e continuava no mesmo lugar. Falei com o motorista e lhe dei a idéia de sair da rota normal do ônibus, “quebrando” por outros caminhos que não passam na Praça da Bandeira – pinicão da cidade que alaga com 2 gotas de chuva.

Ele aceitou a sugestão e, no começo, andamos até bem, mas logo paramos de novo. Daí para frente foi um festival de acertos e desacertos. Entra aqui, sai ali, fica parado mais uma hora. Só sei que passei por lugares que nunca havia visto. Alguém conhece como é atrás do cemitério do Catumbi? Eu agora conheço. Mas, pelo menos o trânsito estava fluindo. Acho que todo mundo tem medo de fantasma e não fica parado perto de cemitério nem em caso de calamidade pública.

Passamos pelo Viaduto Paulo de Frontin derrapando. A água do rio havia subido tanto que não dava para ver o que era calçada, o que era rua ou o que era rio. A essas alturas eu já estava apertadíssima. Também pudera, toda molhada de chuva dentro de um ônibus com ar-condicionado, por mais de... 5 horas.

Quando não deu mais para agüentar, eu saí do ônibus. Estava já na Tijuca, mas há quilômetros da minha casa. Pedir para ir ao banheiro de um bar que estava cheio de gente. Ótimo, isso me deu novo gás.

Resolvi continuar a pé. As ruas pareciam uma festa. Gente! Carros! Oba! Mas o trânsito totalmente parado. Com a minha performance de caminhada, resolvi então continuar. Sabe aquelas loucuras que acometem as pessoas em situações extremas? Pois é, eu ouvia aquela voz que vinha de dentro repetindo “Eu tenho que chegar em casa”, “Eu tenho que chegar em casa”, “Eu tenho que chegar em casa”...

Fui indo... indo.. até chegar no meio do pesadelo. Depois um certo ponto os carros não iam mais adiante por causa de uma “piscina” bem à frente. De onde eu estava, podia ver a Praça Sans Peña sequinha. Fiquei na esperança de encontrar algum ônibus ou van por lá. O problema era que entre mim e a Praça estava a piscina. Um casal resolveu encarar e eu fui atrás. Depois um motoqueiro que havia abandonado a moto se juntou a nós. Só que um dos rapazes prendeu o pé num buraco e ficou preso. O motoqueiro foi ajudá-lo e a namorada o segurava. Eu estava um pouco adiante e ainda cheguei a olhar para trás, mas a voz continuava me dizendo “Vá para casa”. Segui sozinha. A correnteza estava bem forte naquele local . Só havia usado tanta força muscular quando andava dentro do mar quando era jovem. Que bom que as pernas ainda eram fortes. Mas, em algum ponto, pisei num buraco e desequilibrei. Caí deitada naquele mar de sujeira e comecei a ser carregada pela enxurrada. Como estava com o guarda-chuva aberto, ele acabou virando uma espécie de vela que ajudava a correnteza a me carregar.

São nesses pontos que Deus manda os seus sinais. Tenho uma amiga americana que é exotérica. Um dia ela me mandou de presente uma “leitura” sobre mim que havia feito a um oráculo. Embora eu não acredite muito nessas coisas, a leitura trazia boas mensagens, principalmente em relação à proteção. Segundo suas leituras, meu “mestre” mais eminente seria o Miguel Arcanjo. Para ser gentil, mandei a ela uma imagem de Miguel muito linda, pois ele segurava uma reluzente espada dourada. A espada sempre foi o símbolo do guerreiro. Naquele momento eu lembrei dessa imagem e tive uma idéia. Tudo isso em questão de décimos de segundo. Fechei o guarda-chuva e o enfinquei no chão e, desse modo, consegui parar de ser carregada e levantar novamente.

Totalmente encharcada continuei minha caminhada. Eu devia estar com pelo menos uns 7 quilos a mais porque além da roupa molhada, ainda estava carregando uma mochila cheia de coisa. Cheguei até a Praça, mas nem sombra de ônibus, van, tapete mágico ou qualquer outro meio de transporte.

Continuei andando alternando reza, música (coincidentemente uma música do POCO que não havia me saído da cabeça o dia todo chamada Keep on Trying, que quer dizer, “continue tentando”). Nas imediações da Praça, não havia inundação, por isso cheguei rápido à rua Barão de Mesquita. Estava há uns 3 quarteirões de casa. Tão perto e tão longe ao mesmo tempo.

Já deviam ser umas 2 da manhã e lá fui eu, pelo meio da rua. A correnteza começou a ficar forte outra vez. Fui para calçada e me agarrei nas grades do quartel da PE. Fui assim até chegar à altura da rua José Higino. Esse foi talvez o meu segundo pior momento. A rua parecia um daqueles rios nos quais o pessoal faz canoagem. Tive que andar até metade da rua, procurando um ponto mais raso para atravessar. Comecei a atravessar a rua mas estava ficando tonta. De novo a voz interior me falou: Ande na direção oposta da correnteza como se fosse enfrentá-la. Dessa maneira suas pernas irão fazer mais resistência e suas chances de desequilibrar são menores. Assim fui, encarando uma diagonal, de frente para as ondas. Quando estava perto da outra calçada, comecei a desequilibrar outra vez. Me deu um certo desespero porque se eu caísse não conseguiria mais levantar. Minhas pernas estavam cansadas demais devido ao esforço. Eram 2 e pouco da madrugada e minha última refeição havia sido uma sopinha de legumes, às 13:00! Àquela altura, meus níveis de potássio, e açúcar já deviam estar rastejando. Eu estava sendo mantida na base da adrenalina (e certamente da imantação dos protetores espirituais). Bom..., parei, respirei e fiz um grande último esforço em direção a um poste e o agarrei (Já sei, já sei, já sei.... tudo o que não se deve fazer, mas era a única coisa por perto). Fiquei agarrada ao poste até a respiração voltar ao quase-normal. Continuei seguindo o meu caminho. Tinha que voltar para casa e agora estava muito perto.

As pernas estavam doendo muito. Quando cheguei na frente do SESC, vi que um ônibus vinha desbravando as águas. O motorista olhou para mim e parou do outro lado da rua. Pensei que se tratava de uma alma caridosa mas quando cheguei perto do veículo ele arrancou. Havia parado para uma pessoa saltar. Embora eu e a tal pessoa tenhamos gritado para que ele me esperasse, ele também devia estar ouvindo uma voz que o mandava para casa. Tudo bem. Naquele ponto a rua era mais alta e eu consegui andar sem dificuldades até a minha rua.

Minha rua estava completamente alagada, mas a correnteza dela era fraca. Lá também eu já sabia que não haviam bueiros então relaxei um pouco.

Finalmente, depois de 7 horas de aventuras e “revelações”, cheguei ao meu prédio e ao meu apartamento. Acredita que eu ainda parei na portaria para ver se tinha carta pra mim? Verdade.

Sentei na escada e dei curso às lágrimas. Ouvi nitidamente a “voz interior” dizendo “Deus te quer viva”. Chorei mais ainda.

Me dei conta que por todo o percurso, ao invés de pensar nos filhos como sempre fiz na minha vida, havia pensado em amigos o tempo todo. Havia pensado na Dar que havia me falado sobre o arcanjo Miguel, pensei no John que me disse que eu sempre seria uma guerreira, pensei nas palavras doces da Alice que me ajuda com o meu Inglês... Nossa! Como essas pessoas distantes fisicamente fazem diferença na minha vida!

Cheguei em casa em estado de choque. Comecei a chorar porque a minhas coisas que estavam dentro da mochila estavam todas molhadas. Chorei porque a agenda que minha mãe me deu estava molhada. Chorei porque um poema que o John havia feito pra mim também estava molhado... Eu já não estava mais dizendo coisa com coisa.

Foi aí que vi que os meus pés estavam sangrando e que eu havia ralado o joelho e os braços. Tomei banho morno para relaxar mas não consegui. Tomei um remédio para abaixar a ansiedade mas mesmo assim só devo efetivamente ter pego no sono por volta das 4 da manhã.

Graças a Deus não sonhei. Já tinha tido bastante pesadelo para um só dia.

Mas nesse dia eu perdi a minha fé e a redescobri debaixo d’água. Mergulhei na água suja e em mim mesma.

Passa pela minha cabeça que eu possa ter contraído alguma doença brava como leptospirose ou hepatite. Estava machucada e em contato com toda podridão que enxurradas podem carregar. Mas do jeito que eu briguei com as águas, do jeito que as desafiei.... não sei não... Me propus a vencer às águas. Talvez também vença os vírus e bactérias.

Continuo nas mãos de Deus. Não sei qual o Seu propósito, mas ele me quer viva".

Sobre o Autor:
Carlos Roberto Carlos Roberto de Oliveira é advogado estabelecido em Nova Iguaçu - RJ. A criação do Dando Pitacos foi a forma encontrada para entreter e discutir assuntos de interesse geral.

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9 comentários:

  1. Ufa!
    Só tomei folego quando ela chegou em casa. Muito interessante o texto e interessante constatar que a fé das pessoas aumenta quando estão fragilizadas ou quando sofrem grandes perdas.

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  2. Olá Roberto,
    A história da Ana Kristina é tragicômica, com um final feliz.
    Mas o que me chamou atenção em seu post foi a maneira como a descreveu. Quem disser que não se pode ter admiração por pessoas na internet é porque, muito provavelmente, tem em si más intenções.

    Um forte abraço!

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  3. Bom, primeiro de tudo - obrigada pela solidariedade. Eu também ri quando li outra vez a história. Isso é um traço da minha personalidade. Meu humor negro é afloradíssimo e acaba refletindo nas coisas que escrevo. Talvez seja uma autodefesa contra as situações ruins. Sei lá.

    Em segundo lugar postar algo sobre o lado bom da internet seria muito legal. Que você acha, Carlos.

    Eu, particularmente, tenho histórias boas e más para contar a este respeito, mas graças a Deus, a maioria das histórias são boas. Tenho encontrado na internet pessoas fascinantes que hoje são muito mais próximas a mim do que meus irmãos. Às vezes até me esqueço que não as conheço "realmente" (em pessoa) e quando me dou conta disso, chego a ficar espantada. Mas vamos parar por aqui porque esse assunto dá um novo tópico.

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  4. Sua história me fez lembrar uma situação que vivenciei a alguns anos, quando também passei por dificuldades e muito medo por causa de uma chuva que caiu no Rio quando eu voltava para casa.

    Você sobreviveu prá contar um drama que é vivido por toda a população em qualquer chuva que cai sobre as nossas cidades, o que serve prá demonstrar o descaso das autoridades.

    Agora cá entre nós: a reportagem da National ficou ótima!

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  5. Edileia, eu já nem sei se estou me repetindo aqui, mas como essa história já foi parar num monte de lugares, eu já me manifestei mais do que deveria.

    O que me deixa mais irritada e perplexa com essa história é que não havia motivo para catástrofe. Não fomos atingidos por um furacão e nem por uma tsunami. Aquilo só foi uma chuva forte e contínua.

    Se o aquecimento global teve a sua parte nisso, eu não sei, mas o que não funcionou na cidade foi o sistema de drenagem. O povo tem responsabilidade? Tem sim, e muita. Enquanto continuarem jogando lixo nos rios e nas ruas a situação vai continuar. Mas o descaso do Governo corroborou para a situação de maneira decisiva. Além da falta de escoamento - e essa falta já havia sido constatada beeeeeemmm antes do fato e, mesmo assim, nada foi feito - ainda há as obras mal feitas. Como um viaduto pode ficar intransitável por causa de bolsões de água? Que tipo de engenheiro constuiu esses viadutos?

    As encostas estão caíndo porque estão sendo desmatadas. Toda criança sabe disso. Então porque não há uma ação efetiva dos governos para retirar as pessoas dessas áreas?

    Agora, a minha crítica vai para a mídia. Em vista da desgraça que se abateu sobre as famílias pobres de Niterói, porque ninguém pesquisa a vida de alguma jovenzinha morta na tragédia? Lembra o quanto falaram sobre a mocinha de 16 anos morta no deslisamento que destruiu aquela pousada em Angra?

    Bom... deixa eu ficar quietinha porque hoje to afiada como navalha.

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  6. Achei muito legal a postagem. Meus parabéns ao blog. A história contada pela Ana acontece toda hora, com um monte de Marias, Joãos, Pedros, Cristinas, e por aí vai. A gente vê na televisão o(a) cidadão(ã) dizer: "saí do trabalho às 19:00 hs. e só cheguei em casa às 4:00 hs. da manhã. Mas isso fica meio vazio. Ninguém tem a chance de contar o que passou durante o tempo em vagou pelas ruas tentando chegar em casa, os perigos que correu, o medo que sentiu.

    Aí é que está a sensibilidade do blog! A história é comum? Sim, é comum! Os seus detalhes é que fazem o diferencial, pois mostram o sofrimento, a ansiedade, a revolta e a dor das pessoas desprotegidas e jogadas à própria sorte pela administração pública que as devia proteger.

    Outro fato que me chama a atenção é amizade entre simples "amigos virtuais". Tem muita gente ligada por laços de sangue sem esse tipo de conexão. A dupla de autores do blog (eu li a página sobre os dois) não poderia ser mais perfeita.

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  7. Tudo o que eu queria dizer já foi dito pela Lia, e como ela eu também adorei a questão dos "amigos virtuais". Isso é importante prá mostrar que a sacanagem (me desculpem o termo) nem sempre está presente na internet e na ligação entre um homem e uma mulher.

    Parabéns ao blog, mais uma vez.

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  8. Sem querer aparecer e já aparecendo, estou de volta prá pedir desculpas pela repetição dos comentários. É que o primeiro deu um erro. Eu pensei que ele não ia ser postado e fiz outro. Ainda bem que os dois dizem quase a mesma coisa. É como se fosse a minha opinião ao quadrado, rsrsrs!

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  9. Olá, eu já visitei ela, li o texto, comentei, afinal... vivi algo parecido. Beijocas

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