Segundo reportagem recentemente publicada pelo jornal O Globo, tramitam atualmente no Judiciário do país cerca de 15 mil ações cíveis visando reparar o Estado pela conduta desonesta e o enriquecimento ilícito de seus agentes quando no exercício da função pública, que são os chamados processos por "improbidade administrativa" (7.607 nos tribunais federais e superiores e outros oito mil nas cortes estaduais).
Pouquíssimos são julgados. No ano passado, apenas 1,1 mil casos tiveram sentenças definitivas. Além da conhecida inércia do aparelho Judiciário, a morosidade acontece porque os juízes perderam mais tempo analisando recursos e apelações, cerca de 28 mil nos demais processos por improbidade, como informa o Conselho Nacional de Justiça - CNJ, com base em dados fornecidos pelos próprios tribunais até agosto deste ano. Mais difícil ainda é a conclusão de um processo por corrupção e lavagem de dinheiro, crimes que caminham lado a lado quando a fraude é contra o Estado.
Raros são os casos julgados em menos de uma década, como ocorre nos Estados Unidos, por exemplo, onde o ex-banqueiro Bernard Madoff, acusado de fraude contra o Estado e o sistema financeiro, mesmo com 71 anos de idade, foi condenado a 150 anos de prisão por lavar dinheiro e falsear balanços numa pirâmide financeira de US$ 63 bilhões, que lesou sócios no mundo inteiro, inclusive no Brasil (no fundo Fairfield Greenwich). A sentença de Madoff saiu em menos de um ano.
Aliás, qualquer tentativa de comparação do nosso sistema judicial com o americano, não posso esquecer o data venia, seria ridícula. Em 2010, por exemplo, os tribunais brasileiros emitiram apenas 416 sentenças definitivas em crimes de corrupção e 547 em casos de lavagem de dinheiro, o que representa cerca de 10% da média anual da Justiça americana.
As próprias estatísticas judiciais, captadas em pesquisas de opinião como as da Transparência Internacional, atestam a impunidade no país. Na última delas, o Brasil mais se parece a Ruanda, nos Grandes Lagos africanos, e Vanatu, na Melanésia, do que com os seus vizinhos Chile e Uruguai. Simplesmente vergonhoso!
Os tribunais superiores brasileiros, federais e estaduais, têm 5.354 processos criminais por corrupção em andamento. Num país com mais de dez milhões inscritos na folha da União, de estados e prefeituras, significa um processo por grupo de mil servidores. Na média, foram abertos 15 novos casos por dia durante o ano passado. A maior parte (60%) começou na Justiça estadual e teve como réus ocupantes de cargos médios da administração pública. Nestes casos, políticos e altos burocratas, justamente os maiores corruptos, são absoluta minoria, o que reflete o predomínio de influência das elites estaduais. Em Rondônia, por exemplo, um ex-senador do PMDB (tinha que ser!), Mário Calixto, coleciona 146 processos e uma infinidade de condenações, inclusive por corrupção. Se ele foi preso? Claro que sim! Uma única vez, por apenas 45 dias...
O maior exemplo da impunidade no país está aqui: juntos, os tribunais de Estados como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, os mais ricos da Federação, têm apenas 801 processos por corrupção em andamento, em flagrante contraste com o Rio Grande do Sul, que sozinho mantém 579, o que ao menos nos números sugere menor tolerância com a impunidade. São Paulo deve ser o Estado menos corrupto do país, o que se conclui pela quantidade de processos por corrupção que lá tramitam (apenas 17) e os raros julgamentos (no ano passado houve apenas 1). Em compensação, os recursos proliferam: média de 315 para cada processo.
No Judiciário de Brasília, onde se instalou o maior antro de corrupção de que se tem notícia, só há 50 processos em andamento. Roraima tem 2, o Amazonas 6, o Acre 9 e Goiás 34. Uma festa para quem se alimenta do erário público!
Jorge Hage, ministro-chefe da Controladoria Geral da União, até anda comemorando um recorde: nos últimos 12 meses, a média de êxito nas ações de recuperação foi de 15% dos casos julgados, somando R$ 330 milhões - índice que há 4 anos era de apenas 1%. E ele desabafa:
- É quase impossível, hoje, ver um processo condenatório chegar ao fim no Brasil. Um bom advogado pode impedir, por 10 ou 20 anos, uma sentença condenatória. E são justamente os criminosos engravatados - não é o criminoso comum - que podem pagar os melhores advogados.
Com tanto trabalho por fazer e prateleiras abarrotadas por processos de corrupção (ou "malfeitos", como prefere a nossa gentil presidente) nascidos em gabinetes de ministros que acabam não respondendo criminalmente por seus atos, e desembocando até mesmo na merenda escolar, o que tira o pão da boca de milhares de crianças miseráveis que quase sempre vão à escola menos para estudar e mais para comer, o Supremo Tribunal Federal - STF e as associações de magistrados abdicam de suas funções para tentar barrar o trabalho de Eliana Calmon, a Corregedora Nacional de Justiça, que se dispôs a afastar (e enfiar na cadeia, se possível) os corruptos de gravatas e de togas.
A pressão é grande, e não sei até onde a brava Eliana vai resistir. Mas o que a sociedade precisa saber, é que o Conselho Nacional de Justiça é uma instituição republicana, cuja existência muito tem contribuído para o aperfeiçoamento do Judiciário brasileiro.
Ao criar o órgão, a Constituição Federal atribuiu-lhe competência plena para o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes (parágrafo 4º, artigo 103-B), sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais (inciso III, parágrafo 4º, artigo 103).
Logo, ele não é mera instância recursal de decisões oriundas das corregedorias regionais, sendo clara a sua competência concorrente para apuração de infrações disciplinares cometidas em todos os tribunais do país, interpretação que vem apavorando parte da magistratura e do Poder Judiciário, que com as últimas iniciativas tentam desviar o foco da questão central, que é a necessidade de prevalência de sua competência constitucional.
As repúblicas, e a brasileira não é exceção, são baseadas em um regime de responsabilidades, e todo o excesso ou desvio deve ser apurado, respeitado, obviamente, o devido processo legal, também imposição constitucional. Por isso, nenhuma autoridade está imune à verificação da correção de seus atos, razão pela qual é fundamental que se preserve a competência concorrente do Conselho Nacional de Justiça para a apuração, em respeito ao cidadão brasileiro, de todo e qualquer desvio ético e recebimento de valores por parte de Magistrados, explicando-se à sociedade de onde eles vieram e a razão do pagamento. Talvez seja essa transparência que esteja tirando o sono dos que hoje se batem contra Eliana Calmon, que além de Corregedora Nacional da Justiça, também é Ministra do Superior Tribunal de Justiça - STJ, e claro, conhece bem os labirintos por onde caminhou até aqui.
Aliás, outros dados interessantes foram mostrados hoje (29/12) pelo jornal O Globo.
Amanhã (30/12), o Conselho Nacional de Justiça - CNJ completa 7 anos de criação, e de lá para cá já condenou 49 magistrados, sendo 24 punidos com aposentadoria compulsória (é o que diz a lei, infelizmente); 15 afastados em decisões liminares; 6 colocados à disposição (o que significa que não podem julgar); 2 removidos de seus postos originais e 2 censurados. A maior parte dessas condenações (38), nasceram de processos iniciados no próprio CNJ. Apenas 11 são originários das corregedorias dos tribunais de todo o país. É preciso dizer mais alguma coisa?
Na verdade, Eliana Calmon tem dois grandes e imperdoáveis defeito: ela acredita que a lei deve ser cumprida e fala o que pensa. Por isso está com a popularidade zerada entre seus colegas.
Quando disse que o Judiciário sofre de “gravíssimos problemas” causados pela “infiltração de bandidos escondidos atrás da toga”, referindo-se às denúncias de corrupção entre juízes, desembargadores ou ministros dos tribunais superiores, o que é de conhecimento público e notório, fez dirigir contra si a ira de Cezar Peluso, presidente do Supremo Tribunal Federal, que declarou-se “indignado”, não com os bandidos que porventura habitam nas Côrtes judiciais, mas com Eliana. Segundo ele, o que ela disse era uma “ameaça à democracia”, e assegurou que em 40 anos de carreira nunca tinha visto “coisa tão grave”. Eu também, em mais de 50 anos de vida e 23 de exercício da advocacia, nunca tinha visto uma mulher com a coragem da baiana Eliana Calmon e a hipocrisia de Cezar Peluso e seus parceiros.
Aliás, esse é o tratamento que o indivíduo de comportamento reto recebe hoje no Brasil, onde os honestos, os éticos, os cumpridores da lei, são considerados exceções. É por esse comportamento, pelo tipo de atitude tomada por Cezar Peluso e outros membros da maior Côrte de Justiça do país, que o Judiciário brasileiro atravessa sua pior fase, tornando-se, ele sim, uma ameaça à democracia e à integridade do próprio Estado de Direito, que começa a ser fustigado pelo crime, inibindo a ação de milhares de juízes honestos, que ainda são maioria, mas que podem perder a vida por causa da integridade do seu atuar, como aconteceu com Patricia Acioli, a jovem juíza fluminense assassinada com 21 tiros em agosto último, por aplicar a lei contra o crime organizado.
O perfil de Eliana Calmon começou a se desenhar, e claro, a desagradar as cúpulas de parte dos tribunais do país, a partir das respostas que ela deu a algumas perguntas que lhe foram feitas em um entrevista concedida à Revista Veja:
Veja - Por que nos últimos anos pipocaram tantas denúncias de corrupção no Judiciário?
Eliana Calmon - Durante anos, ninguém tomou conta dos juízes, pouco se fiscalizou. A corrupção começa embaixo. Não é incomum um desembargador corrupto usar o juiz de primeira instância como escudo para suas ações. Ele telefona para o juiz e lhe pede uma liminar, um habeas corpus ou uma sentença. Os juízes que se sujeitam a isso são candidatos naturais a futuras promoções. Os que se negam a fazer esse tipo de coisa, os corretos, ficam onde estão.
Veja - A senhora quer dizer que a ascensão funcional na magistratura depende dessa troca de favores?
Eliana Calmon - O ideal seria que as promoções acontecessem por mérito. Hoje é a política que define o preenchimento de vagas nos tribunais superiores, por exemplo. Os piores magistrados terminam sendo os mais louvados. O ignorante, o despreparado, não cria problema com ninguém porque sabe que num embate ele levará a pior. Esse chegará ao topo do Judiciário.
Veja - Esse problema atinge também os tribunais superiores, onde as nomeações são feitas pelo presidente da República?
Eliana Calmon - Estamos falando de outra questão muito séria. É como o braço político se infiltra no Poder Judiciário. Recentemente, para atender a um pedido político, o STJ chegou à conclusão de que denúncia anônima não pode ser considerada pelo tribunal.
Veja - Mas a senhora, como todos os demais ministros, chegou ao STJ por meio desse mecanismo.
Eliana Calmon - Certa vez me perguntaram se eu tinha padrinhos políticos. Eu disse: “Claro, se não tivesse, não estaria aqui”. Eu sou fruto de um sistema. Para entrar num tribunal como o STJ, seu nome tem de primeiro passar pelo crivo dos ministros, depois do presidente da República e ainda do Senado. O ministro escolhido sai devendo a todo mundo.
Veja - No caso da senhora, alguém já tentou cobrar a fatura depois?
Eliana Calmon - Nunca. Eles têm medo desse meu jeito. Eu não sou a única rebelde nesse sistema, mas sou uma rebelde que fala. Há colegas que, quando chegam para montar o gabinete, não têm o direito de escolher um assessor sequer, porque já está tudo preenchido por indicação política.
Vocês já viram algum sujeito "muito macho" fazer esse tipo de afirmação? Já imaginaram essa mulher puxando os fios de algumas meadas obscuras que existem no Judiciário desse Brasil afora? Por isso, a gritaria é geral. Por isso, querem restringir os poderes de investigação do Conselho Nacional de Justiça, reservando-os para as corregedorias locais, o que será o mesmo que entregar a chave do galinheiro à raposa, permitindo que os "malfeitos" sejam analisados sob a visão corporativista que aplaca e esconde as práticas irregulares, inclusive a corrupção.
Se isso não bastasse, que maior legitimidade se pode querer para o Conselho Nacional de Justiça além daquela que vem da aprovação da sociedade? Será que alguém imagina que uma ou duas decisões judiciais vão fazer com que o povo brasileiro acredite mais ou menos na atuação das corregedorias dos tribunais? Quem você acha que hoje tem o respeito da voz que vem das ruas: Eliana Calmon, Cezar Peluso ou os juízes que representam os interesses corporativistas de suas associações? Essas vozes até podem ser amordaçadas por algum tempo, mas como não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe, um dia a grita vai ser geral, e a casa, com absoluta certeza, vai cair!...
Carlos Roberto de Oliveira é advogado estabelecido em Nova Iguaçu - RJ. A criação do Dando Pitacos foi a forma encontrada para entreter e discutir assuntos de interesse geral. |