10 setembro 2013

"Vocês merecem ser estupradas"

Manifestantes na Marcha das Vadias defendem o respeito ao corpo  e à dignidade  feminina, ofendidos pelas “cantadas”
(Foto: Marcelo Fonseca/Brazil Photo Press/Folhapress)

O título pode parecer grosseiro, mas mostra apenas um pequeno trecho de e-mail enviado à jornalista Karin Hueck, fundadora do portal Glück Project, autora de As cantadas ofendem, matéria publicada na última edição da revista Época, inspirada numa pesquisa que revela uma realidade cruel e absurda: as mulheres têm medo de andar sozinhas por causa das agressões verbais e até físicas que recebem dos homens. O estudo faz parte da campanha Chega de Fiu-Fiu, organizada pelo blog Think Olga, criado para a discussão de questões femininas.

Karin começa contando as histórias de quatro amigas: "Natália, de 28 anos, andava por uma avenida movimentada de São Paulo com uma amiga. O rapaz que vinha na direção oposta se esgueirou entre as duas. Encarou-as de alto a baixo e soltou: “Sem calcinha vocês devem ser uma delícia”. Débora, de 29 anos, esperava o semáforo abrir para atravessar uma avenida. Foi abordada por um estranho que a convidava para um café. Puxou-a pelo braço, insistiu e depois começou a segui-la. Thatiane, de 23 anos, estava numa festa. Sentiu alguém deslizar a mão por seu corpo. Ela se voltou para tirar satisfação, e o rapaz a chamou de vagabunda. Thatiane jogou o conteúdo do copo que tinha nas mãos sobre ele. Levou um tapa na cara. Laura tinha 14 anos, estudava no centro de Porto Alegre e saiu para almoçar. Três homens cruzaram seu caminho, passaram a mão no meio de suas pernas e discorreram sobre suas partes íntimas, com uma frase que jamais poderia ser publicada em ÉPOCA".

Natália, Débora, Thatiane e Laura são amigas de Karin, e como ela, já enfrentaram situações constrangedoras nas ruas, como aconteceu com 99,6% das quase 8 mil mulheres que responderam a um questionário on-line. Aliás, o percentual referido é bem parecido com o encontrado num trabalho semelhante feito nos Estados Unidos pela Stop Street Harassment (Parem com Assédio nas Ruas), onde 99% das mulheres afirmaram enfrentar o mesmo problema.

A jornalista diz que as cantadas tornaram-se tão comuns que o assunto quase não é discutido e já faz parte do cotidiano feminino. Algumas mulheres chegam mesmo a afirmar que já nem se importam. Outras, cerca de 17%, acham a cantada legal.

Na hipótese de que os comentários feitos sobre o corpo da mulher sejam admissíveis, a jornalista pergunta qual seria o limite entre o elogio aceitável e a cantada ofensiva? É legal chamar de princesa? Será que pode passar a mão no cabelo? E tocar o corpo da mulher, pode? Segundo Karin, parece que os homens acham que sim, até porque 85% das mulheres que participaram da pesquisa afirmaram já ter sido tocadas ao andar sozinhas. Nas nádegas (88%), na cintura (56%), nos seios (20%), entre as pernas (17%).

Para Karin, todas as gracinhas masculinas, desde a “princesa” até à passada de mão, violam a intimidade feminina, o que aparentemente não incomoda o autor do assédio, para quem o corpo da mulher é visto como algo público, uma espécie de "coisa" da qual ele pode se servir quando bem entender, e quando ela decide protestar corre o risco de ser ofendida ou vítima de uma agressão (68% das voluntárias relataram ter sofrido intimidações verbais ao revidar). Talvez por isso, poucas mulheres reajam às cantadas que ouvem: apenas 27%. “Medo de apanhar” é uma das principais justificativas para o silêncio delas, e faz sentido. Dados da Secretaria de Política para as Mulheres mostram que 37% das brasileiras foram agredidas em vias públicas, e 29% foram atacadas por desconhecidos.

Por isso, afirma Karin, "mais da metade da população brasileira – 51,5% de mulheres – sente medo quando sai à rua. Isso faz com que esse enorme grupo não se expresse da maneira como gostaria. Meu levantamento revela que 90% das mulheres já trocaram de roupa para sair de casa, com medo de chamar a atenção. Mais de 80% mudaram de caminho, desistiram de sair a pé ou até de ir aonde desejavam, por medo da atitude dos homens. As cantadas tolhem a liberdade da mulher".

Neste trecho do trabalho da jornalista, o mais absurdo. De acordo com ela, "a intimidação não acontece só nas ruas. Sofri ataques pelo simples fato de ter lançado o questionário. Internautas anônimos mandaram mensagens de ódio e ameaças para o blog que hospedou o formulário. “Por fora vocês não gostam, mas por dentro adoram”, escreveu um. “Que mimimi é esse? Tem de olhar reto e, se não quiser aparecer, põe uma roupa maior”, escreveu outro. E o campeão: “Essa pesquisa é a coisa mais imbecil que já li. Vocês merecem ser estupradas”, de um usuário cujo e-mail era rapist@raperz...(estuprador@estupradores…). Gente assim deve achar que é direito dos homens cantar as mulheres. Que homem nenhum deveria se controlar perto de uma mulher, passando por cima – imagine, que absurdo! – do impulso de falar obscenidades".

Karin conclui sua matéria fazendo um desabafo, que deveria ser objeto de reflexão por toda a sociedade brasileira:

"Para as mulheres, é incômodo falar sobre o assunto. Elas sentem vergonha, como sugerem os relatos das voluntárias que participaram da pesquisa (além de responder às perguntas de múltipla escolha, elas podiam relatar casos que tivessem vivido). Por que as mulheres têm vergonha? Atrevo-me a sugerir uma explicação: muitas podem pensar que tiveram culpa, que provocaram de alguma maneira o comportamento dos homens. Não raro, quando sofremos uma agressão dessas, pensamos: “Como eu estava vestida?”. Como se isso fosse uma justificativa. Como se isso importasse. Esse raciocínio já é uma forma de violência. É a velha cultura do estupro, absorvida pelas próprias mulheres: “Ela mereceu”. As histórias contadas pelas mulheres que responderam ao questionário são tão chocantes, que é de estranhar que não exista nenhuma campanha pública educativa contra esse tipo de comportamento. Há adolescentes e meninas pré-púberes ouvindo ameaças à virgindade nas ruas, sob o olhar complacente de todo mundo. Essas meninas aprendem desde cedo que, em pleno Brasil do século XXI, a rua pertence aos homens, e nela a mulher anda de cabeça baixa. Já passou da hora de levantarmos a cabeça".






Sobre o Autor:
Carlos Roberto Carlos Roberto de Oliveira é advogado estabelecido em Nova Iguaçu - RJ. A criação do Dando Pitacos foi a forma encontrada para entreter e discutir assuntos de interesse geral.

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