24 junho 2012

Sobrevivente da "Casa da Morte" relata tortura, estupro e humilhação

A chamada "Comissão da Verdade" foi instalada pela presidente Dilma Rousseff no dia 15 de maio último, na presença de ex-presidentes da República e diversas outras autoridades e membros do Poder Judiciário, da Câmara dos Deputados e do Senado. Ela vai passar os próximos dois anos apurando violações aos direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, período que inclui a ditadura militar.

A comissão deverá colaborar com todas as instâncias do poder público na apuração da violação de direitos humanos, além de enviar aos órgãos públicos competentes todo e qualquer dado que possa auxiliar na identificação de restos mortais de desaparecidos.

A ela também competirá identificar os locais, estruturas, instituições e circunstâncias relacionadas à prática de violações de direitos humanos e suas eventuais ramificações na sociedade e nos aparelhos estatais.

Poderá convocar vítimas ou acusados das violações para depoimentos, ainda que a convocação não tenha caráter obrigatório e também a ver todos os arquivos do poder público sobre o período, mas não terá o poder de punir ou recomendar que acusados de violar direitos humanos sejam punidos.

Li a reportagem do O Globo em que Inês Etienne Romeu relata sua história de última presa política a ser libertada no Brasil, e mais que isso, de única prisioneira a sair viva da "Casa da Morte", em Petrópolis, Região Serrana do Rio de Janeiro - RJ, depois de suportar 96 dias de humilhações e tortura.

Vítima de um estranho acidente em sua própria casa no curso do ano de 2003, Etienne teve traumatismo cranioencefálico e quase morreu, mas está se recuperando. Os históricos documentos que ela conseguiu guardar agora estão sendo intensamente lidos e relidos e serão peças importantes nas investigações.

Aliás, localizar a casa e identificar parte dos agentes que atuavam no local, entre eles o colaborador dos torturadores, o médico Amílcar Lobo, só foi possível a partir de um depoimento escrito por ela em 1971, no hospital, e entregue à OAB em 1979, quando terminou de cumprir a pena que lhe foi imposta. Foi também através dela que se ficou sabendo que passaram pela "Casa da Morte" alguns dos militantes desaparecidos na época, como Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, a quem Dilma Rousseff teria sido subordinada nos tempos da VAR-Palmares.

- Quero colaborar como puder — disse Etienne ao saber da reportagem sobre a casa de Petrópolis.

Rua Artur Barbosa, 668 - Petrópolis - RJ, onde funcionava a "Casa da Morte"


Como militante do grupo guerrilheiro, Inês participou do sequestro do embaixador da Suíça, Giovanni Bucher, mas em 5 de maio de 1971 foi capturada em São Paulo por uma equipe do delegado Sérgio Fleury e trazida para o Rio no dia seguinte. Durante os 96 dias que se seguiram, ela foi torturada, humilhada e estuprada:

- Eu estava arrasada, doente, reduzida a um verme e obedecia como um autômato - contaria no depoimento entregue à OAB, admitindo também três tentativas de suicídio durante o cárcere.

Inês só foi libertada porque fingiu concordar que aceitaria trabalhar como infiltrada para o Centro de Informações do Exército - CIE. Ela relatou que foi obrigada a gravar um vídeo no dia 4 de agosto, no qual foi filmada contando dinheiro e lendo um contrato de trabalho com a repressão.

- Neste contrato constava uma cláusula segundo a qual, se eu não cumprisse o combinado, minha irmã, Lúcia Etienne Romeu, seria presa, pois eu mesma, sua própria irmã a acusava de estar ligada a grupos subversivos - contou Inês.

Ela foi presa no hospital para onde a família a levou quando de sua libertação. Condenada à prisão perpétua, ficou presa até 1979, quando tornou público todo seu martírio. Inês recebeu o "Prêmio Direitos Humanos" de 2009, na categoria "Direito à Memória e à Verdade".

Em seus escritos, Inês não menciona Paulo Malhães, que teria sido a pessoa responsável pela organização da "Casa da Morte", segundo declarações do próprio tenente-coronel reformado. Na reportagem, também do jornal O Globo, o "Doutor Pablo", codinome adotado na época, fala sobre o propósito e a rotina do aparelho clandestino mantido durante a década de 70 pelo Centro de Informações do Exército - CIE, e onde podem ter sido executados cerca de 22 presos políticos.

Malhães, hoje com 74 anos, revelou que a casa era chamada de centro de conveniência e servia para pressionar os presos a mudar de lado e virar RX (informantes infiltrados, na gíria dos agentes). Ele não usa a palavra tortura, mas deixa clara a crueldade dos métodos usados para convencer os presos:

- Para virar alguém, tinha que destruir convicções sobre comunismo. Em geral no papo, quase todos os meus viraram. Claro que a gente dava sustos, e o susto era sempre a morte. A casa de Petrópolis era para isso. Uma casa de conveniência, como a gente chamava.

Ele só não disse o que aconteceu com os presos que se recusaram a trair seus companheiros. Ficou em silêncio diante da pergunta, mas lembrou que nada na casa de Petrópolis era feito à revelia dos superiores.

- Se era o fim da linha? Podia ser, mas não era ali que determinava.

Perguntado acerca do destino de alguns presos que segundo documentos e testemunhas passaram pela "Casa da Morte", o militar reformado disse que o ex-deputado federal Rubens Paiva não esteve por lá, mas admitiu ter visto Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, comandante da VAR-Palmares desaparecido em fevereiro de 1971.

- O Beto talvez tenha conhecido - informou Malhães.

Questionado uma última vez sobre a possível execução de militantes da luta armada, ele respondeu:

- Se ele deu depoimento, mas a estrutura (da organização guerrilheira) não caiu, ele pode ter sofrido as consequências.

O relato de Inês Etienne Romeu e as declarações de Paulo Malhães, apesar de algumas interpretações que se levantarão em contrário, não deixam dúvidas acerca dos crimes praticados no período da ditadura. Crimes que reclamam por punição, independentemente do tempo decorrido, porque foram praticados contra a humanidade (crime de lesa-humanidade), cuja definição nasceu com os "Princípios de Nuremberg" (1950), que foram aprovados pela Organização das Nações Unidas - ONU, e integram, na visão de praticamente todos os tribunais penais do mundo e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Direito Internacional cogente ou imperativo.

A polêmica instalada sobre se os crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura militar brasileira ainda podem ser investigados e punidos não se justifica, primeiro porque, como já afirmei, configuraram crimes contra a humanidade, de natureza permanente, não alcançados pela prescrição, e segundo, porque a Lei de Anistia não se aplica a tais delitos. Aliás, a nova versão do "Programa Nacional de Direitos Humanos" prevê uma série de ações para identificar e responsabilizar agentes do Estado que, durante a ditadura militar, torturaram, mataram e desapareceram com os opositores do regime.

E quais seriam os crimes contra a humanidade? De acordo com os "Princípios de Nuremberg" são crimes contra a humanidade: o assassinato, o extermínio, a escravidão, a deportação ou qualquer outro ato desumano contra a população civil, a perseguição por motivos religiosos, raciais ou políticos, quando esses atos ou perseguições ocorram em conexão com qualquer crime contra a paz ou em qualquer crime de guerra.

A memória brasileira é curta. Da mesma forma que nunca enfrentamos as violações cometidas contra os povos indígenas e os negros, no período da escravidão, há uma flagrante acomodação em relação aos graves crimes cometidos durante o regime ditatorial, o que não mais se pode admitir. Precisamos aproveitar este momento em que o Brasil, pela primeira vez em sua história, tentará sistematizar as sérias violações aos direitos humanos que ele mesmo cometeu. É natural que a disputa pela memória venha a acarretar conflitos. Mas quem errou tem que pagar. É o mínimo que se pode fazer pelos pais, filhos e netos de tantos e tantos desaparecidos. É uma questão de honra para uma Nação que quer deixar de ser pequena.



Sobre o Autor:
Carlos Roberto Carlos Roberto de Oliveira é advogado estabelecido em Nova Iguaçu - RJ. A criação do Dando Pitacos foi a forma encontrada para entreter e discutir assuntos de interesse geral.

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