27 dezembro 2012

De quem foi a omissão de socorro no caso da menina Adrielly?


A menina Adrielly dos Santos Vieira, de 10 anos, que foi atingida na cabeça por uma bala perdida na noite de Natal, e esperou por quase oito horas por socorro médico no Hospital Municipal Salgado Filho, no Méier, foi transferida hoje (27/12) para o Hospital Municipal Souza Aguiar, no centro. Ela continua em estado grave. O médico que a poderia ter atendido, o neurocirurgião Adão Orlando Crespo Gonçalves, faltou ao plantão para o qual estava escalado. O médico chefe do plantão, Enio Eduardo Lopes, não comunicou o atraso de Crespo à direção do hospital e nem pediu a transferência da menina para outra unidade. Em entrevista, o delegado titular da 23ª DP (Méier), Luiz Archimedes, disse ontem (26/12) que o neurocirurgião poderá ser indiciado por omissão de socorro, o que não me parece ser a iniciativa mais correta.

Quando li a notícia pela primeira vez, confesso, fiquei revoltado com a atitude do médico que faltou ao plantão. Naquele instante, eu o enxerguei como responsável por todo o drama de pequena Adrielly e de sua família. Mas ao analisar o fato com mais calma,  cheguei à conclusão (o que também pode acontecer no curso de um processo criminal porventura instaurado) de que Adão Orlando Crespo Gonçalves cometeu, sim, uma falta administrativa, passível de punição diante das regras trabalhistas ou pelo Conselho Regional de Medicina - CRM, cujos estatutos desconheço, mas nunca por infração à lei penal.

Antes de qualquer coisa, vamos dar uma olhadinha no que diz o artigo 135, do Código Penal, que cuida da omissão de socorro:


"Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública.

Pena - detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.

Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de
natureza grave, e triplicada, se resulta a morte".


Quem lê o dispositivo percebe, acho que sem muito sacrifício, que qualquer pessoa, mesmo sem qualquer qualidade especial, é potencialmente apta a praticar o crime. A partir deste raciocínio, a doutrina penal se divide em duas correntes: uma entende que o sujeito ativo (no nosso caso, o neurocirurgião) não precisa estar no local para ser enquadrado no tipo de omissão de socorro. A outra defende a tese de que o sujeito só será responsabilizado se estiver no local e no mesmo instante em que a vítima necessita do socorro.

Damásio E. de Jesus, um dos maiores e mais respeitados doutrinadores em matéria penal no Brasil, ensina, considerando a primeira linha de raciocínio, que o ausente responde pelo crime quando chamado ao local para exercer o dever de assistência, acrescentando que sua responsabilização só poderá ocorrer se ele tiver consciência do grave e iminente perigo em que se encontra a vítima.

Cezar Roberto Bitencourt, adepto da segunda corrente doutrinária, entende que "o sujeito ativo deve estar no lugar e no momento em que o periclitante precisa de socorro; caso contrário, se estiver ausente, embora saiba do perigo e não vá ao seu encontro para salvá-lo, não haverá crime, pois o crime é omissivo, e não comissivo.”

A partir daí, fica patente a dificuldade para definição da responsabilidade do agente, o que vai depender da análise do juiz encarregado do julgamento da ação penal, que escolherá entre as duas correntes a que melhor se aplica ao caso.

Por isso, repito, acho que o neurocirurgião Adão Orlando Crespo Gonçalves cometeu uma falta administrativa, passível de punição diante das regras trabalhistas, ou ética, punível pelo Conselho Regional de Medicina - CRM, mas não um delito penal. Ele não estava no local onde a vítima precisava de atendimento, sequer chegou a assumir o plantão, não se podendo falar, pois, em omissão de socorro.

Mas a história tem culpados, sim! O primeiro deles, é o médico chefe do plantão, Enio Eduardo Lopes, que não comunicou o atraso do colega, e o mais grave, não providenciou a transferência da pobre criança para outra unidade. O segundo culpado, até porque isso acontece a todo momento, é a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, que não presta à população em geral, mas principalmente àquela mais carente, a assistência médica que ela necessita. Um único médico de plantão por especialidade em cada unidade hospitalar é pouco. Dois, pelo menos, seria o número razoável. Isso praticamente eliminaria o problema da falta de um dos profissionais, mas custa dinheiro, e a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, superpreocupada com a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, é claro, não pode suportar mais despesas. É mais fácil ir para a mídia e chamar os médicos de "delinquentes", jogando-o aos leões.

Se o atendimento fosse para alguém do calibre de um Sérgio Cortes, Secretário de Saúde do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, a coisa funcionaria de outra forma, como aconteceu quando o figurão se intoxicou com a fumaça de um incêndio em sua cobertura, no dia 19 de agosto de 2010. Ele foi imediatamente socorrido por uma ambulância do SAMU e levado ao Hospital Samaritano, o que contraria a regra existente entre estas unidades móveis e a rede privada. O fato ganhou os noticiários. Chegou-se mesmo a falar em uma "rigorosa apuração de responsabilidades". Nunca mais se tocou no assunto.




Sobre o Autor:
Carlos Roberto Carlos Roberto de Oliveira é advogado estabelecido em Nova Iguaçu - RJ. A criação do Dando Pitacos foi a forma encontrada para entreter e discutir assuntos de interesse geral.

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