04 setembro 2011

Rio de Janeiro arquiva 96% dos inquéritos de homicídios

Diante da omissão, descaso e negligência dos governos na criação e manutenção de penitenciárias capazes de acomodar e recuperar o condenado, preferiu-se afrouxar a lei e mandar à rua bandos de criminosos. Agora é o Ministério Público que, incapaz de cumprir sua missão de fiscal da lei, escolheu o caminho mais curto: arquivar em massa para chegar ao fim do ano com suas prateleiras vazias. Tudo em nome da chamada Meta 2 traçada pelo Conselho da instituição, que quer se livrar a todo custo dos procedimentos investigatórios mais antigos.

Só o Rio de Janeiro já engavetou 6.447 casos, cerca de 51% dos pedidos de arquivamento do país, ignorando evidências e fazendo crescer a impunidade, apesar da recomendação do procurador-geral de Justiça do Estado, Claudio Lopes, que garante terem os promotores sido orientados a agir com "dignidade", sem ignorar provas que possam levar à elucidação dos homicídios. Pura balela!

Um exemplo? Segundo O Globo (04/09), num inquérito que tramita pela delegacia de Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio, seu responsável, o comissário de polícia Domingos Lopes, fez constar de seu relatório que nas investigações realizadas surgiram indícios bastantes "do envolvimento no crime por parte de Valdilene, Sandro, Roberto, Marcelo Barbosa e Ademir Siqueira". Por isso, ele queria que lhe fosse aberto um novo prazo para novas diligências (investigações), mas o promotor do caso, Sérgio Pinto, foi implacável, e em abril, quatro anos depois do relatório, concluiu: "Fato não testemunhado, autoria ignorada. Pelo arquivamento". Uma vergonha!

O inquérito, que apura o assassinato de Marcelo Caetano, morto a tiros dentro de casa, em abril de 2005, é um dos 6.447 procedimentos investigatórios de homicídios a que me referi acima, arquivados em apenas quatro meses (abril a julho) pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, e só não entrou para as estatísticas do descaso com que é tratado o cidadão contribuinte porque um Juiz indeferiu o pedido de arquivamento feito pelo Promotor de Justiça (?). Mas e as outras mortes? Ficarão impunes? Foi esse o objetivo da tal Meta 2, do Conselho Nacional do Ministério Público - CNMP, que determinou a conclusão, até o fim deste ano, de todos os inquéritos de homicídios dolosos abertos até 2007. É assim que o Ministério Público fluminense faz justiça e combate o crime?

Nos primeiros quatro meses de aplicação da Meta 2, os órgãos do Ministério Público do país já arquivaram 11.282 casos e ofereceram denúncia em apenas 2.194. O Rio de Janeiro é o segundo maior engavetador de inquéritos do país. Aqui, o Ministério Público requereu o arquivamento de 96% dos casos examinados, mais da metade de todos os inquéritos arquivados no Brasil em nome da famigerada Meta 2. Só fomos superado por Goiás, que arquivou 97% das investigações em curso.

Segundo a reportagem, "o exame de uma amostra dos inquéritos que tiveram esse destino, numa das quatro varas do Tribunal do Júri da capital, revela que alguns promotores, para zerar o acervo, estão ignorando evidências ou arquivando investigações que nem chegaram a começar em inquéritos que se resumem à mera troca de carimbos entre a delegacia e o MP".

Quando a Meta 2 começou, em abril, o Rio de Janeiro registrava 47.177 inquéritos em andamento, e na correria que se instalou, erros absurdos e incompreensíveis foram cometidos pelos Promotores de Justiça, o que não teria acontecido se eles tivessem tido o cuidado de examinar algumas páginas dos inquéritos na hora de determinar o arquivamento.

Prova disso está no caso do servente Geílson Gomes de Carvalho, de 35 anos, retirado de casa e morto a pauladas por traficantes de Vigário Geral, no dia 22 de junho de 1998. Convencida por um papa-defuntos, Maria do Carmo David de Souza, companheira da vítima, mentiu na delegacia ao dizer que Geílson havia sido atropelado, o que lhe permitiria receber o seguro do DPVAT. A armação foi desfeita pelo irmão do morto, Joaquim de Carvalho, que confirmou e descreveu o crime.

Além de não apurar a fraude, a 39ª Delegacia de Polícia da Pavuna esqueceu de retirar da capa do inquérito a classificação de "atropelamento", embora a própria fraudadora tivesse reconhecido a mentira em novo depoimento anexado ao volume. Em 9 de agosto deste ano, a promotora Andréa Rodrigues Amin pediu o arquivamento do caso. Motivo: prescrição por extinção da punibilidade, por se tratar de um "atropelamento" cuja pena máxima seria de quatro anos. Procurada pela reportagem do jornal, Andréa Amin reconheceu o erro. Disse que não leu, realmente, as peças do inquérito que revelavam a fraude, mas afirmou que mesmo que o tivesse feito e constatado o homicídio, teria pedido o arquivamento. Ela é titular da 29ª Promotoria de Investigação Penal (Pavuna, Vicente de Carvalho, Acari e outras áreas violentas), e sofre com 3.300 inquéritos da Meta 2 em aberto:

- Trabalho com duas delegacias que ainda não são delegacias legais. Os policiais, envelhecidos e mal pagos, ainda trabalham com máquinas de escrever. Se as famílias das vítimas não ajudarem, não há como chegar aos autores.

Você quer um outro exemplo da omissão criminosa das autoridades fluminenses? O garçom Alexsander Lima Batista, de 22 anos, e o servente Alexandre Chaves do Nascimento, de 28, foram executados em Vicente de Carvalho, no dia 20 de janeiro de 2006. Como das outras vezes, tudo levava a crer que o ping-pong dos carimbos ia prevalescer, quando um comunicado reservado da Ouvidoria da Polícia apontou, com detalhes, um grupo de extermínio liderado por um sargento da Polícia Militar como responsável pelos assassinatos.

No início do mês de agosto, a promotora Janaína Marques decidiu que era melhor esquecer o caso, e pediu o arquivamento alegando que "foram efetuadas diligências com o intuito de apurar o fato, sem contudo lograr-se êxito", o que não corresponde à realidade, pois o exame do inquérito mostra que, mesmo depois do comunicado, a polícia não fez uma única diligência para apurar o caso.

Aliás, tudo leva a crer que alguns promotores, entre eles a própria Janaína Marques, já padronizaram uma fórmula para o arquivamentos em massa dos inquéritos. Num conjunto de pedidos negados por juízes cariocas, aparecem 11 casos em que o requerimento da promotora era exatamente igual, com uma única mudança: o nome da vítima. Janaína explica que os textos são iguais porque "os fundamentos são os mesmos".

Todos os casos de arquivamento selecionados pela reportagem têm duas características principais: os inquéritos são magros (têm pouquíssimas folhas que se resumem à troca de carimbos entre a delegacia, que sempre pede mais prazo quando o atual está prestes a vencer, e o Ministério Público, que o concede), e as vítimas seriam moradores de áreas pobres e violentas. Gente que não precisa de justiça, não é mesmo?

E que ninguém se iluda: o número de arquivamentos tende a crescer. Sérgio Pinto, o promotor de justiça que requereu o arquivamento do inquérito que apurava a morte do guarda municipal de Santa Cruz, informou que só no mês de agosto tomou a mesma iniciativa em relação a outros 292 casos. E ele defende a medida:

- Estamos arquivando para que os novos inquéritos detenham atenção especial em sua elucidação.

A omissão e o descaso das autoridades fluminenses é flagrante. Por isso, de carimbo em carimbo, os inquéritos acabam sendo atingidos prescrição e criminosos ficam impunes. E é essa impunidade que alimenta a violência. Esse é o Brasil de todos!


Fonte: O Globo



Sobre o Autor:
Carlos Roberto Carlos Roberto de Oliveira é advogado estabelecido em Nova Iguaçu - RJ. A criação do Dando Pitacos foi a forma encontrada para entreter e discutir assuntos de interesse geral.

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